Günter Wand*
O enfrentamento das forças rítmicas
elementares dos intervalos temporais pares e ímpares atravessa à maneira de um
fio condutor toda a produção sinfônica de Anton Bruckner. Desempenha um papel
importante na invenção dos temas, no seio dos quais se sucedem duínas e
tercinas de mesma duração, mas mais ainda enquanto contraponto rítmico quando
as forças, que por sua natureza se afastam umas das outras ao desenrolar-se,
são canalizadas, como por encanto, no mesmo intervalo de tempo. É notadamente a
esse dualismo rítmico de todo próprio de Bruckner que o pujante movimento de
pêndulo de sua música sinfônica deve seu impulso e seu violento ardor. Aqui se
revelam teores que ultrapassam de longe o puro domínio do ritmo musical. É como
se esse dualismo tivesse valor de símbolo do que é inconciliável na natureza humana
e da aspiração a vencer essa incompatibilidade.
O senso infalível de Bruckner para a
dependência entre tempo e espaço é a argamassa que faz manter-se a rocha
primitiva de que se erguem suas catedrais sinfônicas. A arquitetura de sua
música resulta, com efeito, menos do desenvolvimento do material temático, como
é, por exemplo, o caso na música sinfônica clássica, que do equilíbrio tanto
sonoro e dinâmico quanto espacial e temporal dos blocos temáticos que se
defrontam. Se a confrontação de valores rítmicos pares e ímpares e a tentativa
de fundi-los no mesmo intervalo de tempo conduz a explosões e sacudidelas que
fazem pensar em erupções vulcânicas e até em fenômenos cósmicos, o fato de
dobrar e de triplicar os valores de notas, de passar diretamente, por exemplo,
de tercinas de colcheias a tercinas de semínimas e de mínimas, produz menos a
impressão de desaceleração do tempo que a de alargamento do espaço (final da Quarta Sinfonia).
Há na música de Bruckner períodos em que
as leis de tensão e distensão parecem ser abolidas. Diversos impulsos rítmicos
de mesma natureza se superpõem, em parte num duplo intervalo temporal. Resulta
disso um fenômeno singular: a forma animada pelos sons produz o efeito de estar
estático, de maneira comparável à imagem das estrelas no firmamento noturno,
as quais descrevem sua trajetória mas parecem imóveis. É tão somente por momentos
que a música de Bruckner mergulha nessas dimensões, como, por exemplo, no “desenvolvimento”
do primeiro movimento da Nona, mas já
também no stretto marcado ppp no seio do final fugado da Quinta.
Em tudo isso, jamais se tem a impressão
de que tais efeitos de energias rítmicas sejam fabricados ou calculados, ou de
que se trate de marcas de um refinamento composicional particular (como, por
exemplo, quando no Quarteto para Oboé de
Mozart o oboé prossegue sozinho em seu caminho de 4/4 enquanto as cordas tocam no
compasso de 6/8). Não, a força imperiosa dessas inspirações parece antes
pertencer à natureza das coisas, em tudo conforme à forma e à beleza naturais
de temas únicos em seu gênero.
Mais pronunciada em comparação com as
sinfonias anteriores, a rudeza da imagem sonora da Nona, a qual produz por vezes o efeito de um distanciamento
consciente, decorre da extrema consequência que preside a conduta polifônica
das vozes, a qual irrita muitos ouvidos à primeira audição. Ela é expressão de
um isolamento do mundo, de uma profunda veracidade que, após tantas visões extáticas
da glória do outro mundo, está igualmente em condição de formular a mais
vertiginosa dissonância. Esse grito terrível, no qual parece ressoar até o fim
dos tempos o lamento da humanidade a chorar o paraíso perdido, não pode por si mesmo encontrar solução nem redenção. Vem em seguida a ele o silêncio, e
depois o abandono à fé, que é segurança e refúgio. A sonoridade parece desprender-se
da matéria, e doravante o pulso da música bate até a transfiguração final na certeza
do NON CONFUNDAR IN ÆTERNUM.
*
Maestro alemão (1912-2002), um dos dois maiores intérpretes do Bruckner
sinfônico (o outro é o austríaco Eugen Jochum, que, todavia, é sem dúvida o principal
intérprete da música religiosa do compositor, enquanto Wand, pelo que sei, nem
sequer a gravou). – Esta tradução se fez de texto para a caixa RCA das Sinfonias 1-9 de Bruckner por Wand (com a
Kölner Rundfunk-Sinfonie-Orchester).
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