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sábado, 30 de junho de 2012

A “Oitava Sinfonia” de Bruckner (e um vídeo com Karajan e a Filarmônica de Viena interpretando-a)

Herbert von Karajan

C. N.

I

Como dizia o maestro romeno Sergiu Celibidache, e como o reafirmam tantos, a Oitava Sinfonia de Bruckner é não só a maior entre as sinfonias compostas pelo artista austríaco, mas a mais grandiosa jamais escrita em todos os tempos. Nela, como escreve Constantin Floros, “a clareza da estrutura e a lógica da forma não são de modo algum influenciadas pelo dinamismo de tais fenômenos [ou seja, as mudanças bruscas de expressão que percorrem a obra]. Os quatro movimentos monumentais são perfeitamente arquitetados até no detalhe, e cuidadosamente proporcionados. Os desenvolvimentos limitam-se aos temas e motivos da exposição: jamais se introduzem novos elementos. A disposição harmônica permanece, apesar da mobilidade da modulação, clara e eficaz. As relações de terça provocam urgentes laços harmônicos”.
Mas avancemos no entendimento técnico da Oitava dando extensamente a palavra a Wolf-Eberhard von Lewinski: “Mais da metade das sinfonias de Anton Bruckner é em tom menor: três delas, em particular, em dó menor, entre as quais a Oitava. Ele criou esta obra prodigiosa no curso dos anos 1884-1887 [...].
“Independentemente de todas as [obtusas e empobrecedoras] explicações-programa que se puderam dar desta sinfonia ‘para uma melhor compreensão’, pode-se dizer que se trata de uma forma amplíssima de música absoluta, de uma espécie de desenho puramente musical.[1] A sinfonia começa sobre três breves motivos nas cordas baixas. O tema principal, ao mesmo tempo irreal [melhor se diria ‘misterioso’] e conciso, que se forma por cima de um tremolo das cordas, distingue-se particularmente por seus ritmos, que se prolongam através de todo o primeiro movimento até uma emocionante apoteose, pouco antes do fim. Em contraponto, dois outros temas assumem determinada importância: uma ampla cantilena, plena de expressão, confiada aos violinos, e uma melodia marcada por contrastes de duínas e tercinas que competem antes de tudo às trompas, às flautas, aos oboés e aos clarinetes.
“O tema obstinado e tenso do Scherzo, que toma aqui [pela primeira vez entre as sinfonias de Bruckner] o segundo lugar na sucessão dos movimentos, dá-se um ar quase recalcitrante. O idílio muito desenvolvido, de grande emoção, do trio, onde intervém a harpa, constitui a parte mais contrastada deste Scherzo.
“[...] A solenidade solene e sombria do Adagio é portada pelos metais, em grande distribuição, incluindo tubas wagnerianas. Nos primeiros compassos, o motivo das cordas que acompanham o primeiro tema [...] evoca um pouco uma respiração possante e calma e torna-se, em seguida, um importante elemento constitutivo deste movimento. O próprio tema principal vai longe: é um canto que percorre todos os registros. A sonoridade deste movimento vê-se amplificada por harpas, pratos e triângulos, instrumentos que Bruckner não utiliza em nenhuma outra sinfonia (afora a Sétima, em que usa pratos). Após uma imensa gradação tipicamente bruckneriana,[2] o movimento se encerra num longo canto radioso.
“O fascinante Finale comove imediatamente, por uma espécie de obstinação, as cordas, por sobre as quais se desenha um poderoso tema de metais. Na coda,[3] Bruckner reúne engenhosamente os temas principais dos quatro movimentos: a sinfonia desemboca assim em sua apoteose”.

II

A Oitava Sinfonia de Bruckner, como no-lo diz Richard Osborne, “atravessa a carreira [do maestro Herbert von] Karajan como um Leitmotiv. [...] No verão de 1944, Karajan tinha começado a gravar a Oitava Sinfonia em Berlim, renunciando à segurança e à tranquilidade dos Alpes austríacos e italianos em prol deste trabalho de que ele tinha tanta necessidade. Numa época em que a música de Beethoven devia parecer excessivamente otimista e a de Brahms excessivamente circunspecta,[4] era a Bruckner que competia expressar um sentimento ao mesmo tempo épico e carregado de inquietude.[5] Para Karajan havia também outra dimensão [na música de Bruckner]. [Atenção:] Precisamos aqui, escreve ele à mãe, liberar-nos de todas as coisas terrestres em que estamos atolados e levar de volta a música para as alturas espirituais de onde ela vem”. Karajan voltará a gravar a Oitava em 1979.
E encerramos o artigo com um vídeo de Karajan com a Filarmônica de Viena interpretando magnificamente este ápice da música e da arte que é a Oitava Sinfonia em dó menor de Anton Bruckner:



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[1] Deve-se porém tratar criticamente este mesmo conceito – “música absoluta”, “desenho puramente musical” –, o que se fará em outro artigo. (Cf. já, todavia, Um “Carmen Figuratum” da Cruz e um “X” de Bach.)

[2] Estudaremos, em outro artigo, as principais características técnicas da música de Bruckner. Então veremos se podemos chamar a Bruckner “epígono de Wagner”. Antecipe-se que a resposta será absolutamente não, em particular por isto que diz o maestro Eugen Jochum: “No que concerne à instrumentação, Bruckner dificilmente pode ser considerado romântico; ele se baseia absolutamente no ideal sonoro barroco [...]. Mas suas concepções vão, passando pelo mundo de Palestrina, desde a mística do gótico primitivo até a comunhão com a natureza [sobretudo nos Scherzi; mas uma ‘comunhão’ de que decorre, em Bruckner, uma ascensão a Deus, como se pode ver, sugestivamente, em O Scherzo da “Quarta Sinfonia” de Bruckner transcrito para conjunto de metais] preconizada pelo século XIX, e somente neste último ponto ele se aparenta um pouco mais a seu contemporâneo Richard Wagner. Mas a obra monumental deste último exprime toda a nervosa sensibilidade de sua época; ela é repleta de um erotismo ardente e de uma subjetividade sem limites, ligada a uma grandiosa [e gnóstica] concepção da Natureza. Bruckner se afasta completamente desse erotismo sensual, mas é tomado, ao contrário, pelo calor e pela vitalidade da paisagem e dos costumes populares austríacos; o pano de fundo de toda a sua música [porém] é feito de piedade e de uma relação mística com Deus [...]”. Aliás, diga-se o mesmo da música de Bruckner com respeito ao conjunto do romantismo. Com efeito, como diz com grande precisão o estudioso Robert Simpson (que pelo que eu saiba nem sequer é católico), “a essência da música de Bruckner está na paciente busca de apaziguamento. Isso não significa um desejo místico de paz [que quer ele dizer com isto, todavia, não o alcanço de todo]. Ao falar em apaziguamento, refiro-me à tendência de Bruckner a remover, um a um, todos os elementos perturbadores ou dispersivos até revelar um último estrato de pensamento calmamente contemplativo. De modo geral, em Bruckner, as tensões humanas são gradualmente pacificadas, [e] neste sentido ele difere radicalmente do tipo de romântico que libera suas tensões em vez de aplacá-las”. Teremos oportunidade de aprofundar de vários ângulos esta profícua observação.

[3] Coda: seção que conclui uma obra musical (sonata, sinfonia, etc.), ou ainda qualquer movimento seu.
[4] Dizia Bruckner: “Querem beleza? Vão à música de Brahms. Querem [beleza e] algo mais? Venham à minha”.

[5] Do efetivo, do central caráter épico da música de Bruckner trataremos em outro texto; quanto à referida inquietude, relembre-se o que se diz na nota 3 acima e, muito especialmente, em Reflexões sobre a “Nona Sinfonia” de Bruckner. – Devemos aliás assinalar imprecisões e erros até nos melhores estudiosos da música de Bruckner. É o caso deste mesmo Richard Osborne, que falando da Nona Sinfonia do compositor austríaco e do estranhamento que nos causa diz esta enormidade: “Ter-se-ia abalado sua fé [católica, de Bruckner] pelas teorias de Darwin?” Como é possível dizê-lo, se não só, como vimos em outro artigo (Vídeo de Eugen Jochum regendo o primeiro movimento da “Nona Sinfonia” de Bruckner), a Nona é repleta de reminiscências de obras religiosas do próprio Bruckner (do Kyrie e do Miserere da Missa em ré menor; do Benedictus da Missa em fá maior; e da fuga do Finale da Quinta Sinfonia, esta que é já toda uma oração), mas, ademais, é dedicada pelo compositor “Ao bom Deus”? Além disso, tenhamos sempre em mente as agudíssimas palavras do maestro Günter Wand em Reflexões sobre a “Nona Sinfonia” de Bruckner. Mas veja-se, ainda, esta outra enormidade, escrita por Roland de Candé de mistura com algo efetivamente verdadeiro: Bruckner “também era excessivamente devoto; sua religião infantil era a principal fonte de sua inspiração”. Indubitavelmente, sua religião era a principal fonte de inspiração de sua música. Que porém ela seja infantil é que é impossível. Primeiro, por uma razão óbvia e perfeitamente captável pelo senso comum: se algo é de fato grande, como reconhece De Candé que é a arte de Bruckner, então não pode ter por fonte principal de inspiração algo infantil; ao contrário, há de ter por fonte algo perfeitamente maduro e maiúsculo. Mas há a outra razão, esta teológica: como dizia Santo Tomás de Aquino, "uma velhinha que tem a fé [virtude infundida por Deus mesmo] sabe mais que todos os filósofos pagãos juntos”.

  




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