Prelúdio nº 1 do Cravo Bem Temperado |
O que é o Sistema Temperado
Ir. Afonso Maria
MÚSICA:
DEFINIÇÃO E REFLEXÃO
Podem-se dar duas respostas básicas à questão
sobre “o que é música”.
• “Música é a arte dos sons, que se divide fundamentalmente
em três partes: melodia, harmonia e ritmo, ordenadas segundo as leis da estética”.
• “Como as demais artes, a música é um modo de
representar o belo”.
Bastam porém tais definições para explicar satisfatoriamente
o que é música? Se sim, a que corresponde então afirmar que algo está ordenado?
Segundo as leis de que estética? Quem a criou? Podemos afirmar que o som das
botas dos soldados de determinado pelotão correndo no mesmo ritmo constitui uma
peça musical? Por outro lado, o que é o belo? Em que nos baseamos para dizer
que tal música é mais bela que outra? Se pedirmos a 10 motoristas que soem a
buzina de seus automóveis “ordenadamente” (ao mesmo tempo, sucessiva e/ou
simultaneamente), poderemos dizer que é belo o som produzido, pelos acordes
produzidos?
Pois bem, se nos parecem satisfatórias aquelas
definições, por falarem em ordem, estética e beleza, o problema, todavia,
reside na concepção que se tem hoje desses mesmos termos. Explique-se.
Escreve Nikolaus Harnoncourt, em O Discurso dos Sons, que “os valores que os homens dos séculos precedentes
respeitavam não nos parecem hoje importantes. Eles consagravam todas as suas
forças, todos os seus esforços e todo o seu amor a construir templos e
catedrais, em vez de se dedicarem à máquina e ao conforto”. E junto com esta
mudança veio justamente a degradação daqueles conceitos e da arte de maneira
geral.
Para que se tenha uma ideia deste processo de
corrupção, em 1971 o artista francês Marcel Duchamp chocou o mundo artístico
assinando nada mais nada menos que um URINOL, e colocando-o em exposição como
obra de arte. Mas o mais impressionante é que em 2004 quinhentos “especialistas
de arte” consideraram A Fonte de
Duchamp a mais influente das obras da arte moderna.
Duchamp exerceu grande influência sobre Tacey
Emin, uma artista londrina. A Minha Cama, uma obra de Emin que foi indicada
para o prestigioso Prêmio Turner, consistia numa cama por fazer, decorada com
garrafas de vodca, preservativos usados e roupa íntima manchada de sangue. E, como
se não bastasse o horror da obra em si, durante uma exposição na Tate Gallery ,
em 1999 , a cama foi vandalizada por dois homens nus, que se puseram aos saltos
em cima dela a beber a vodca das garrafas. Este “espetáculo” extra não fazia
parte da obra. Sendo o mundo da arte moderna, todavia, o que é, o público o aplaudiu
entusiasmadamente. Atualmente, Emin é professora da European Graduate School.
Tudo isso é resultado, em suma, do triunfo do
liberalismo com a revolução francesa. Ora, com o liberalismo e seus frutos mais
imediatos, o subjetivismo e o relativismo, passa-se a negar a objetividade não
só da verdade e do bem, mas também da beleza.
Sendo assim, para mostrarmos que a beleza musical
(a que nos interessa aqui) é objetiva, e antes de tratarmos os sistemas de
afinação que mais tiveram vigência na música, vejamos como a matemática contribuiu
e contribui para aquela objetividade.
NÚMERO, MÚSICA E BELEZA
Que é proporção? É uma igualdade de duas razões: a/b = c/d, e portanto é um valor matemático, objetivo e universal. Não depende nem de nós. A igualdade, por exemplo, de 2/4 = 3/6 é verdadeira não porque a julgamos tal, mas porque tanto 1/2 como 3/6 são iguais a 0,5.
Pergunte-se, pois: é a beleza tão objetiva
quanto qualquer proporção matemática? Ou melhor: o que é belo o é por alguma
proporção matemática?
Os primeiros filósofos a tratar a relação
entre número e beleza foram os pitagóricos. Eles puderam, por exemplo, determinar
as relações matemáticas implicadas nas consonâncias mais importantes (o
intervalo de quarta, o de quinta e a inversão deste, o intervalo de quarta) e
elaboraram, pela primeira vez, um sistema de sons adequado ao uso musical.
Em De institutione
musica” (I, 10), Boécio conta a antiga história de como Pitágoras descobriu
a relação entre o número, música e beleza. Passando ele um dia perto de uma
forja, notou que ao golpearem a bigorna os martelos produziam sons harmoniosos.
Já lá dentro, após ter considerado outras coisas, pesou os diversos martelos e comprovou
que tinham pesos tais, que era possível formar entre eles determinada
proporção.
Como os respectivos pesos dos martelos eram
de 12, 9 , 8 e 6, foi possível armar a proporção seguinte: 6/8 = 9/12
Ou seja, os martelos que pesavam 12 e 6
produziam, ao golpear, uma oitava. Os que pesavam 12 e 9, ou 8 e 6, produziam a
quarta. Entre o que pesava 9 e o que pesava 8 dava-se um tom inteiro. E de fato,
pela quantidade de vibrações duplas por segundo, as proporções entre os vários
sons naturais são:
Dó 9/8 Ré 10/9 Mi 16/15 Fá 9/8 Sol 10/9 Lá
9/8 Si 16/15.
À oitava (Dó a Dó) corresponde o dobro de
vibrações por segundo. Quinta é o correspondente ao intervalo de 3/2 (de Dó a
Sol, 3/2). Quarta, ao intervalo de 4/3 (de Do a Fá). E assim sucessivamente
Ora, os sons mais agradáveis ao ouvido
correspondem a proporções que se podem expressar numericamente. Logo, tais proporções são em grande parte a
causa mesma da beleza musical.
O SISTEMA PITAGÓRICO
Ao
longo do tempo, propuseram-se mais de 100 sistemas de afinação. Desses sistemas,
não mais de 20 terão sido usados mais amplamente. Na Idade Média, por exemplo,
o sistema utilizado era o pitagórico.
Com
efeito, mediante a manipulação das oitavas e baseando-se no intervalo de
quinta, os gregos discriminaram a variação contínua das alturas sonoras,
através da introdução sistemática de graus descontínuos. A simplicidade das
razões 2/3 e 1/2, por estarem associadas a estes dois intervalos (quinta e
oitava), permitiu que se constituísse uma escala heptatônica, isso é, de sete
sons.
Para que se tenha uma ideia de como isso funcionava na prática, imaginemos a corda solta de
um cânon. Consideremos que, ao tangermos a corda, o som obtido será o de Dó0.
Se percorrermos nesta mesma corda uma distância na proporção de 2/3 do
comprimento dela e voltarmos a tangê-la, obteremos o intervalo de uma quinta
superior a Dó0, ou seja, Sol0. A 2/3 do comprimento de
Sol0 corresponde o som Ré1, que é mais agudo que Dó1,
pois, com relação ao comprimento inicial, Dó1 corresponde à metade
do comprimento, enquanto Ré1 corresponde a 2/3 x 2/3 = 4/9 do comprimento. Sistematizando
este processo, obteremos Lá1 Mi2 e Si2, cujos respectivos comprimentos
correspondem, com relação ao comprimento da corda inicial, a
4/9 x 2/3, 8/27 x 2/3 e 16/81 x 2/3. Preencher o intervalo entre Dó0 e
Dó1 com estas novas notas
corresponde a obter Ré0 LÁ0
Mi0 Si0 ,
o que se torna simples, pois, se queremos o som que está na oitava abaixo de
dado som com comprimento X, esse som terá comprimento 2nx. Falta tão
somente construir Fá0: se imaginarmos um som associado a um
comprimento X tal que Dó1 se situe uma quinta acima desse som, então
½ = x 2/3, donde x = 3/4, comprimento correspondente a Fá0, que se
encontra uma quinta acima de Dó0.
Os pitagóricos
optaram pela escala heptatônica, julga-se, por estar ela em concordância com a
estética da época. Se porém continuarmos com o ciclo
de quintas a partir de Si2,
multiplicando sucessivamente os comprimentos associados aos sons por 2/3, obteremos os outros cinco sons
que correspondem às notas acidentadas: Fá#3,
Dó#4, Sol#4, Ré#5, Lá#5. Assim, o intervalo
de oitava fica dividido em doze partes. O fato de serem doze notas se deve a
que, após se aplicarem doze quintas a um som, o som obtido ficará a cerca de
sete oitavas do som inicial, ou seja, entra-se num ciclo de período doze. Doze
quintas, no entanto, não correspondem exatamente a sete oitavas. Com efeito,
Lá#5 pode ser encarado como o som obtido de Dó0 por
aplicação de dez quintas sucessivas. A quinta de Lá#5 é Fá6,
e a quinta de Fá6 é Dó7, quer dizer, Dó7 está
doze quintas acima de Dó0. Como o comprimento correspondente a Dó0
é 1, o comprimento de Dó7 será
porque corresponde a doze quintas de Dó0. Não obstante, como Dó7 se encontra sete oitavas acima de Dó0, sucede que o comprimento de Dó7 obtido dessa forma é
A defasagem entre estas duas notas é quantificada pela razão
que se chama coma pitagórica.
A coma pitagórica evidencia o fato de que as quintas,
acusticamente perfeitas, do Sistema Pitagórico não podem ajustar-se com as
oitavas: qualquer que seja o número de sucessivas quintas que se apliquem a um
som inicial, o som resultante nunca poderá ser obtido por oitavas sucessivas.
Por conseguinte, a divisão da oitava em doze partes iguais nos remete
à questão da incomensurabilidade,
assunto que os gregos desde cedo observaram mas não conseguiram compreender.
Tal fato, porém, faz ressaltar justamente que, em certo sentido, os limites da
música são condicionados pelos limites expressos segundo a matemática.
O SISTEMA TEMPERADO OU TEMPERAMENTO
O Sistema
Temperado é o sistema de afinação que possibilita dividir o intervalo de uma
oitava em doze semitons iguais. Um dos primeiros a apontar para esta
possibilidade foi o matemático Simon Steven, que, no século XVI, dividiu a
oitava em doze partes iguais com uma aproximação bastante razoável. Este
sistema, todavia, só foi devidamente fundamentado por Andreas Werkmeister, em
1691. É também por então que se começam a usar os logaritmos para determinar as
notas musicais e o intervalo entre elas.
Diga-se
que o intervalo de quinta e o de quarta do Sistema Temperado não são, em termos acústicos,
perfeitos como o são no Sistema Pitagórico; mas os novos intervalos correspondentes
não diferem muito.
A real
introdução do Temperamento se deu no início do século XVIII. Sim, porque foi
exatamente para mostrar que a proposta de Werkmeister não só era viável, mas
não comprometia de modo algum a qualidade e a beleza da música, que Johann
Sebastian Bach compôs O Cravo Bem Temperado,
um conjunto de peças que cobrem as doze tonalidades, no modo maior e no modo
menor.
Descrevamos
o Sistema Temperado. Sabemos, por teoria musical, que o intervalo de tom se
divide em 9 comas. Chama-se “coma” (< lat. coma,ae
< gr. kómē,ēs) à nona parte de um tom.
E, com efeito, a discussão sobre a possibilidade do Sistema Temperado se dará
entre músicos e físicos em busca da melhor solução para igualar justamente
essas nove pequenas partes que separam ou dividem um tom. A proposta era
igualar os semitons em partes perfeitamente iguais, com o que vemos, mais uma
vez, o expresso pela matemática implicado na música.
Sabemos
também, e ainda por teoria musical, que há uma distância entre um tom e outro:
o semitom. O semitom é o menor intervalo entre dois tons que se pode perceber
auditivamente. Por exemplo: entre a nota Dó e a nota Ré encontramos a nota Dó#
ou Ré b (isso se se leva em consideração exatamente o Sistema Temperado.)
A questão
está justamente na distância entre, ainda por exemplo, quantas comas havia
entre nota Dó e a nota Dó# e posteriormente entre a nota Dó# e a nota Ré. Já
sabemos que a distância de um tom possui 9 comas. Vejamos como físicos e os músicos
viam a divisão entre eles.
Segundo
os físicos:
Dó Dó# Ré
[4 comas] [5 comas]
Segundo
os músicos:
Dó Dó# Ré
[5 comas] [4 comas]
A divisão
proposta pelos músicos era mais coerente (até porque, como é óbvio, eles tinham audição mais apurada...). Se porém não se resolve esta questão, o impasse
continua. Como igualar os semitons em partes perfeitamente iguais se, tanto segundo
a proposta dos músicos como segundo a dos físicos, ambos apresentam a diferença
de uma coma?
Ora, se
temos a distância de 5 comas entre a nota Dó e a nota Dó# e a de 4 comas entre
a nota Dó# e a nota Ré (segundo a proposta dos músicos) ou vice-versa (segundo
a proposta dos físicos), em ambas teremos Dó# ≠ de Ré b, como acontece nos
sistemas naturais.
Sendo
assim, a saída encontrada foi simplesmente dividir em partes iguais as nove
comas, ficando então cada semitom com 4 ½ comas. Resultado:
Dó Dó# Ré
[4 ½
comas] [4 ½ comas]
Ao olharmos
para as teclas de um piano, temos uma ideia do que possibilitou este sistema.
Vemos a nota Dó e a nota Ré representadas por teclas claras e, entre elas, uma
única tecla preta, que com o Sistema Temperado serve tanto para a nota Dó# como
para a nota Ré b.[1]
Como
exemplo de instrumentos temperados ou de som fixo, podem citar-se o próprio
piano, o órgão, o harmônio e a harpa.
CONCLUSÃO
Alguns autores afirmam que, com o Sistema Temperado, houve um grande prejuízo da afinação em detrimento da harmonia. De fato, os sistemas naturais (como o de Pitágoras e o de Zarlino) se fundamentam em cálculos acústicos e definem com precisão tanto o número de vibrações para cada nota como as relações entre elas.
Em outras
palavras, os Sistemas Naturais seriam, por um lado, mais afinados, mas, por
outro lado, mais complexos, enquanto o Sistema Temperado seria, entre outras qualidades,
mais prático.
Deixemos,
porém, o aprofundamento desta questão para outra oportunidade, e apresentemos
brevemente outra, que desde há muito vem tirando o sono de maestros e de musicólogos.
Trata-se do tão discutido problema de como executar a música dita antiga, com
instrumentos de época (também chamados instrumentos naturais) ou com
instrumentos modernos. Para o já citado Nicolaus Harnoncourt, não é possível
usar uma orquestra de Richard Strauss para tocar Bach, assim como tampouco é
possível usar uma orquestra de Bach para tocar Richard Strauss. Mas o grande
problema, parece-me, não está na orquestra ou instrumentos com que se tocará
este ou aquele compositor, mas na interpretação que se dará a ele. Esta,
contudo, é uma questão que também deixo para um artigo futuro.[2]
Sim,
porque o objetivo deste pequeno artigo já foi alcançado: mostrar que a beleza
musical, como toda e qualquer beleza, é objetiva, e fundada, por sua parte, no expresso pela matemática. É com esta perspectiva que devemos entender as duas
definições de música dadas mais acima.
E o que é
artística e efetivamente belo nos remete ao que é não só o próprio Verdadeiro e
o próprio Bem, mas a própria Beleza: Deus mesmo. Olhem-se as catedrais góticas
e a arquitetura barroca e suas imagens, ouçam-se as polifonias de Palestrina e
de Victoria e a música única de Bruckner, e se terá, de certo modo, uma imago Dei.
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