domingo, 13 de janeiro de 2013
“Glenn Gould foi o maior pianista deste século [XX]” (Karajan)
C. N.
Lemos muito recentemente:
a música de Bach pode ser tocada, sim, em piano, mas corre o risco de ganhar
“materialidade”. Entende-se o móvel da afirmação: mesmo a música profana do
compositor alemão tinha um quê de espiritualidade religiosa, o qual se perde
com a interpretação pianística. Mas o piano dá mais “materialidade” à música de
Bach que o cravo, esse instrumento de sonoridade altamente metálica e
semipercussivo? Se se trata do modo romântico de tocar o piano, com sua
projeção múltipla e prolongada dos harmônicos por um uso radical dos pedais –
como numa peça de Liszt, em que as notas como que se embaralham no empuxo de um
teclado percorrido longa e furiosamente –, talvez. Mas não se se trata do modo
gouldiano de tocar Bach. Já se disse que o pianista canadense usava o piano
como se fosse um cravo. Não é fato. O que ninguém como ele conseguiu, isto sim,
foi combinar certa maneira de atacar as teclas – como que as acariciando com dedos talhados para o instrumento[1]
– e um uso parco e sapientíssimo dos pedais. Garantia com isso, sim, a
superioridade do piano sobre o cravo quanto à projeção dos harmônicos, mas
mediante uma dinâmica perfeita que, indo do staccato
ao ataque mais viril das teclas, assegurava aquela “espiritualidade” da
música de Bach. Mais ainda: tocando
Bach, Glenn Gould fazia uma como radiografia da música (a expressão não é nossa). Por quê? Porque, sem
perder, repita-se, as vantagens harmônicas do piano, fazia ouvir cada nota até na fuga mais intricada e
de andamento mais acelerado. E que dizer da maneira quase impossível, no limite
do musical, com que sustentava os andamentos mais lentos?[2]
Pois bem, comparem-se o
Bach tocado por Gould e o tocado por qualquer
outro pianista, e ver-se-á por que o maestro Herbert von Karajan (um dos
maiores) disse o que se lê no título deste artigo; por que o violinista Yehudi
Menuhin (um dos maiores) disse que Gould era “o mais inspirado dos pianistas”; por
que o violoncelista Mstislav Rostropovich (igualmente
um dos maiores) disse que o pianista canadense era “sem igual”; por que o próprio
pianista russo Sviatoslav Richter (considerado um virtuose) teve de reconhecer que Gould tocava Bach melhor
“até” que ele mesmo (“porque estudava mais”...); etc. Certamente, tocando Mozart
ou qualquer romântico Gould era inferior – em verdade, não os suportava.
Igualmente é certo que se tratava de homem extremamente excêntrico.[3]
Ademais, não era propriamente agradável vê-lo tocar: sentava-se num banquinho
tão baixo, que quase lhe deixava o rosto à altura do teclado; curvava-se cada
vez mais, com a idade e a perda da visão, para adquirir ainda maior proximidade
com as teclas; girava o corpo enquanto tocava como se o usasse como a um
metrônomo; cantarolava as peças enquanto as executava como que para assegurar-se
de sua memória grandíssima (o mesmo Cravo
Bem Temperado ele tocava-o inteiro sem partitura...), e por vezes sua
voz rouca se ouve nas próprias gravações; etc. Como todavia tudo isso perde
importância diante da música bachiana de Gould, com toda a sua leveza, com toda
a sua “espiritualidade”, com toda a sua mescla perfeita de clareza, virilidade
e sublimidade artísticas!
Veja-se o vídeo publicado
na próxima postagem (de Gould tocando a belíssima Partita n. 4 em D maior,
BWV 828)[4]
e constate-se tudo quanto acabamos de dizer. Que outro pianista, insista-se, é
dono de comparável toucher e de
comparável dinâmica na arte de interpretar o mestre Bach?
[1] Veja o curioso caso do
espanhol Andrés Segovia: ele é talvez o violonista mais expressivo; mas suas
mãos e dedos gordos, claramente não apropriados para o instrumento, o faziam
perder em limpidez técnica, por exemplo, para John Williams ou para Julian
Bream. Gould é para o piano o que seria para o violão uma mescla de Segovia e
Williams.
[2] Os autenticistas – ou seja,
os que tocam o Barroco com “instrumentos e/ou modo de época” (voltaremos ao
assunto) –, além de, em grande parte dos casos, tornar anêmica a música de
Bach, tendem a acelerá-la muitíssimo; e isto se dá mesmo com autenticistas
moderados, como o maestro Rilling (compare sua pálida e acelerada interpretação
das Cantatas de Bach com a interpretação vigorosa e de andamento variado que
Karl Richter lhes empresta). Ora, Gould passa olimpicamente por cima desse
historicismo arbitrário, e dá à música de Bach toda a gama possível e alternada
de andamentos. É preciso insistir em quanto ganha com isso a música do
compositor alemão?
[3] Contra a “tradição” que
o dizia assexuado, quer-se hoje imputar-lhe um caso adúltero com a anuência do
marido. Quem o assegura? Esse mesmo casal, convenhamos, nada digno e nada confiável,
que só o trouxe a lume após a morte do músico... Nada se sabe ao certo de sua
vida privada, que Gould sempre manteve absolutamente reservada. Era de origem
protestante (salvo engano, puritana), e abominava as apresentações públicas;
logo as deixou em troca dos estúdios de gravação. Era hipocondríaco, e morreu
de um AVC quase fulminante aos 49 ou 50 anos – talvez pelo excesso de remédios.
Mas não estamos tratando aqui tão somente da música de Gould? Em algum grau sua
música extrapola os limites em que a suma Ciência cinge esta arte? Contraria o
fim a que Ela ordena todas as artes? Conquanto a resposta a essas indagações
necessite do aprofundamento que só um livro lhe pode fornecer, já se pode porém
dizer com total segurança: não, não os contraria de modo algum. Não só toda e
qualquer Verdade é católica; também o é toda e qualquer Beleza simpliciter.
[4] As Partitas afiguram-se-nos como as peças mais importantes e mais sublimes do Bach
instrumental profano.
Postado por
Carlos Nougué
às
13:28
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Ainda sobre os princípios do blog A Boa Música
C. N.
Sobretudo pelo inusitado
(no mundo moderno) da posição deste blog quanto
às artes em geral e à música em particular (vide
nossa Apresentação), convém de vez em quando repisá-la. E fazemo-lo aqui da
forma mais simples: cabe à sacra Teologia não só determinar o fim último de
todas as ciências (especulativas ou práticas) e de todas as artes, mas, em
razão disso, cingir o campo em que todas podem desenvolver-se. Naturalmente,
nenhuma peça musical, ainda que se destine ao fim justo, pode ser boa se for
artisticamente falha; mas nenhuma peça musical artística ou tecnicamente
conseguida será simpliciter boa se
não se sujeitar ao fim e aos limites que lhe dita a sacra Teologia. E isto
decorre do mais singelo dos raciocínios: se tudo se ordena ao Fim último,
incluindo os objetos imediatos ou os fins intermediários (no caso da música,
criar beleza sonora e deleitar ou enlevar o ouvinte), e se a sacra Teologia está
sob a luz da ciência do próprio Fim último, então nada mais natural que caiba a
ela o dito acima. Um exemplo para encerrar – por ora – o assunto: a Apassionata de Beethoven é
conseguidíssima do ângulo técnico-artístico; mas, porque expressa uma
exacerbação apaixonada que arrasta o ouvinte, e porque tal exacerbação é contrária
aos limites ditados pela sacra Teologia, não se pode dizer boa simpliciter. Outro exemplo: um nu
perfeitamente esculpido e perfeitamente sensual não se pode dizer arte simpliciter boa – e deve ser evitado.
Voltaremos ao tema não só aqui, mas, muito mais aprofundadamente, em livro.
Postado por
Carlos Nougué
às
13:22
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