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quarta-feira, 29 de outubro de 2014

O Haydn Sinfonista


Haydn Sinfonista

C. N.

O austríaco Franz Joseph Haydn (1732-1809) é um dos dois principais compositores[1] do Classicismo (o estilo que medeia entre o Barroco e o Romantismo), além de ser o inventor da sinfonia moderna.
Compôs 104 sinfonias numeradas, e outras duas.[2] Muitas se tornaram conhecidas por seu apelido: por exemplo, a Nº. 73 em Ré Maior (“A Caça”); a Nº. 85 em Si Bemol Maior (“A Rainha”); a Nº. 92 em Sol Maior (“Oxford”); a Nº. 101 em Ré Menor (“The Clock”). Tais apelidos recordam alguma impressão deixada por tais obras, ou alguma circunstância de sua primeira execução, etc.
As primeiras datam de 1760. No entanto, conquanto seja o inventor desta grandiosa forma musical moderna, suas primeiras sinfonias e tantas outras não merecem figurar entre o melhor da arte sinfônica. São como exercícios para o que viria, e padecem não raro da superficialidade que caracterizou parte da produção classicista. Eram, se tal se pode dizer, peças aristocráticas tão delicadas como uma porcelana de Sèvres, tão bordadas como um móvel Luís XV – ad nauseam –, e repletas tanto de alusões folclóricas e espirituosas como de leve melancolia. São de um rococó après la lettre
Mas na segunda fase da vida e da produção de Haydn o desenho de suas sinfonias começa a ampliar-se; sua construção e sua orquestração tornam-se mais complexas; o que se expressa faz-se mais profundo – por vezes, muito mais profundo. E, como atesta a quase unanimidade dos estudiosos, sem dúvida alguma as mais importantes sinfonias haydnianas são as doze (da 93 à 104) compostas para concertos em Londres, e chamadas por isso mesmo “londrinas”.[3] Passemos a descrevê-las sucintamente, mas de modo que contribua um pouco para uma boa audição sua.[4]


Sinfonia Nº. 93 em Ré Maior

Começa de modo inusual: um adagio executado por toda a orquestra em fortissimo sobre três rés, dois dos quais com fermata.[5] Mais famoso, porém, é o segundo movimento, Largo cantabile, em cujo final a música se vai apagando ao som de delicados toques de tímpano até que, inesperadamente, irrompe em fortissimo um fagote para simular... uma flatulência. Muitos o julgam mais uma mostra do senso de humor, do sprit, do wit de Haydn. Nós, de seu mau gosto de salão. Aliás, sempre se disse que é por decoro que esta sinfonia não tem apelido, e não porque não o inspire; e não poucos maestros procuraram minimizar nas salas de concerto tal efeito do fagote. Mas por este mesmo efeito, além de outras razões, é que não incluímos esta sinfonia entre as grandes do legado haydniano.
Observação. Muitos assinalaram que tanto na arquitetura como na sonoridade geral desta sinfonia o compositor se liberta da influência sinfônica de Mozart. Mas ele não deixa de citar no quarto movimento o oboé do “Viva la libertà” de Don Giovanni.

Sinfonia Nº. 94 em Sol Maior [“A surpresa”]


Talvez a mais conhecida das sinfonias de Haydn. Seu apelido deve-se ao surpreendente golpe de tímpano ao fim dos quinze primeiros compassos em piano.[6] Este andante se tece de quatro variações e de uma coda[7] sobre seu célebre tema (que Haydn reutilizaria, alterado, na ária do lavrador d’As Estações, um de seus oratórios).

Sinfonia Nº. 95 em Dó Menor


Distingue-se do restante ciclo londrino por ser a única em modo menor[8] e por prescindir da introdução em adagio. Por outro lado, a forma fugada[9] do quarto movimento (Vivace) tem muita semelhança com a belíssima Sinfonia Nº 41 (a “Júpiter”) de Mozart.

Sinfonia Nº. 96 em Ré Maior [“O milagre”][10]


Apesar da introdução em adagio, é sinfonia especialmente alegre e luminosa graças, sobretudo, ao minueto de sabor vienense: confirma-o o Ländler[11] de seu trio, um solilóquio de oboé. Para a sensação geral de leveza, contribui ainda o movimento final (Vivace – Vivace assai), com a brevidade de seus motivos e a ausência de repetições.[12]

 

Sinfonia Nº. 97 em Dó Maior


Obra muito recordada por particularidades do segundo movimento (Adagio ma non tropo) e do terceiro (Menuetto – Trio). O segundo tece-se de uma série de variações e de coda. Na terceira, Haydn procura um efeito raro, a saber, uma sonoridade asperamente metálica, mediante a indicação “al ponticello, vicino al ponticello, sul ponticello” para os violinos. No final do trio do Menuetto, outra indicação autógrafa do compositor: “In octava Salomon solo ma piano”, para que o violinista Johann Peter Salomon tocasse una oitava acima do restante dos violinos.

Sinfonia Nº. 98 em Si Bemol Maior[13]


Aqui o compositor emprega pela primeira vez os trompetes em si bemol, o que então era pouco usual. Parece que tomou a ideia da Sinfonia Nº 36 de seu irmão Michael, estreada quatro anos antes. Haydn repetiria o recurso na Sinfonia Nº 102, em suas últimas missas e em algumas partes d’A Criação.
No primeiro movimento, o adagio introduz o tema que aparecerá no allegro.
O segundo e elegíaco movimento (Adagio) foi considerado por alguns como um lamento pela morte de Mozart; e um motivo seu que lembra o tema principal do segundo movimento da Júpiter parece corroborá-lo.
O longo quarto movimento (Presto) é o mais ambicioso final de sinfonia haydniana, e conta, quase no fim, como um solo de fortepiano para o qual Haydn deixou indicação autógrafa: “com precisão e delicadamente”.
A Nº. 98 parece-nos um dos pontos altos da arte sinfônica.

Sinfonia Nº. 99 em Mi Bemol Maior


Aqui a orquestração apresenta novidades: antes de tudo, a estreia do clarinete na produção sinfônica de Haydn. Mas também, no segundo movimento (Adagio), a intervenção dos trompetes, que nunca haviam aparecido em nenhum movimento lento do Classicismo. Neste mesmo segundo movimento, o tema principal é apresentado pelas cordas e ecoado pelas flautas e pelos oboés, tema que de modo surpreendente é uma transposição para a clave de sol das seis notas que ensejam o primeiro movimento (Adagio – Vivace assai). Depois, uma passagem de dez compassos, a cargo unicamente dos sopros,[14] leva à exposição do segundo tema, outra variação da introdução do primeiro movimento.
Belíssima.

Sinfonia Nº. 100 em Sol Maior [“Militar”]


Esta é talvez a sinfonia de Haynd mais popularmente apreciada. Nela o compositor reciclou um movimento inteiro de uma peça anterior, o Concerto para Duas Liras Hob. VIIh. 3; e é a esse movimento, o segundo (Allegretto), que a peça deve seu apelido. Segundo um costume de então, Haydn introduziu neste movimento, em forma de lied, a chamada “percussão turca” (composta de triângulo, pratos e bombo), a qual, ademais, reaparecerá no quarto movimento (Finale: Presto).[15]
Mas ainda mais interessante que o segundo movimento é o quarto, pelo solo de tímpano de um compasso de duração e por sua prefiguração do desenvolvimento perpétuo.
Também é obra-mestra.

Sinfonia Nº. 101 em Ré Maior [“The Clock”” = “O Relógio”]


Deve o apelido a seu segundo movimento (Andante), que efetivamente imita o som de um relógio mediante um ritmo pendular sustentado por vários instrumentos, numa orquestração que se vai enriquecendo progressivamente enquanto, sobre ela, os violinos tocam uma melodia suave. Por outro lado, todavia, as dimensões do Minuetto parecem enquadrá-lo já, de algum modo, na sinfonia romântica. É como que uma ruptura com a ordem própria do Classicismo.  Mas no quarto movimento (Vivace) o compositor se mostra não só senhor da forma (rondó-sonata), mas ainda do contraponto, para expressão de alegria (com uma ponta de ironia). Aqui, ao contrário de antecipar o Romantismo, Haydn como que retorna ao Barroco; e recorde-se que a grande arte do contraponto será retomada, sim, por Beethoven (Missa solemnis, Große Fuge, etc.), mas sobretudo, em escala suprema, por Bruckner (e, em decorrência, por Mahler e por Franz Schmidt). Romantismo e contraponto nem sempre andaram parelhos.

Sinfonia Nº. 102 em Si Bemol Maior


Além de algumas passagens que de algum modo antecipam a música de Beethoven, aluno de Haydn, o ponto alto desta obra é o Adagio (segundo movimento), com sua dupla exposição ornamentada por orquestração de grande equilíbrio, mas muito original. Suas modulações eram inovadoras então, e há ainda a famosa intervenção do trompete pouco antes do fim para prolongar um acorde do conjunto da orquestra.

Sinfonia Nº. 103 em Mi Bemol Maior  [“Rufar de Tambores”]


As dimensões da orquestra (sessenta componentes) que deve executar esta sinfonia impressionaram muito ao público que assistiu à sua estreia. A introdução em fortissimo com rufo de tímpanos, algo até então nunca visto numa sinfonia, é a origem do apelido da obra. Após a introdução, vem um sombrio adagio, em que os instrumentos graves citam o Dies Irae. Em seguida, o movimento desenvolve-se em forma sonata (em 6/8), com constantes alusões ao tema introdutório e em tempo mais vivo.[16]
O segundo movimento (Andante più tosto allegretto) e o Finale (Allegro con spirito) empregam material folclórico croata.
Para nós, uma das mais belas.

Sinfonia Nº. 104 em Ré Maior [“Londres”]


Estruturada em Adagio – Allegro, Andante, Menuetto: Allegro – Trio e Finale: Allegro spiritoso, tem por ponto alto este mesmo Finale (em forma sonata), no qual um baixo de, cremos, Dudelsack[17] precede e sustenta um tema de caráter aparentemente popular. Alguns acreditaram ver neste Finale uma como despedida do gênero da parte de Haydn, pela deliberada retardação do movimento: com efeito, um tema (o B) elaborado em mínimas e uma prolongada cadência quebrada retardam consideravelmente a reexposição.
Se tal é certo, ou seja, se se trata de despedida, então o é em ponto maior: verdadeira coroação.[18]

*  *  *

Discografia das Sinfonias Completas

• Philharmonia Hungarica. Regente: Antal Doráti (Decca).
• Orquestra Austro-húngara Haydn. Regente: Adam Fischer (Brilliant).
• Orquestra do Real Concertgebouw. Regente: Colin Davis (Philips).
• Orquestra do Século XVIII. Regente: Frans Brüggen (Philips).


Observação. Entre estas, a de Doráti é a de nossa preferência. Mas também admiramos muito HaydnFavourite Symphonies – Philharmonia Orchestra, com o regente alemão Otto Klemperer. Sua interpretação de oito sinfonias haydnianas foi não raro reprovada por romântica. Se tal é fato, é-o para bem: porque a gravidade impressa por Klemperer a estas obras lhes dá a profundidade que ainda lhes faltava – com o que já se mostra que não temos nenhum pendor historicista.[19]  




[1] O outro é Mozart.
[3] De nossa parte, acrescentamos-lhes a 88 e a 92. Mas uma das londrinas não nos pode agradar, e já diremos por quê.
[4] Relembre-se que nesta série só estudaremos mais detidamente, em grande detalhe, cada uma das sinfonias de Bruckner, cada uma das de Mahler e cada uma das de Franz Schmidt – justamente, para nós, os dois ápices da sinfonia, com Bruckner em primeiro plano –, além de sinfonias isoladas de outros compositores. – Acrescente-se apenas que nem todas as de Mahler são superiores. Mas nas que o são o compositor quase chega a ombrear-se com Bruckner.
[5] Sustentação indeterminada ou suspensão indeterminada de nota; e o sinal que as indica. Também chamada coroa ou caldeirão.
[6] Ou seja, com dinâmica suave.
[7] Seção conclusiva, que pode ser ou não ser recapitulativa.
[8]  Mas este modo não se mantém ao longo da obra.
[9] Isto é, ao modo de fuga.
[10] Estranhamente, o apelido deve-se a episódio sucedido durante a estreia em Londres não desta sinfonia, mas da No. 102. Nada que importe musicalmente.
[11] Popular dança de origem austríaca, não muito movimentada e em compasso 3/4 ou 3/8. É precursora da valsa. Todos os grandes compositores austríacos, incluído Bruckner (em scherzi), recorreram a ela.
[12] Desta fonte beberia alguma vez Mahler.
[13] A No. 4 de Beethoven inspira-se nesta sinfonia.
[14] Uma inovação na escrita sinfônica com respeito a estes instrumentos.
[15] O propósito de Haydn era tão somente produzir um efeito espetacular. Mas público presente à estreia da sinfonia (em 31 de março de 1794) tomou-o como um clamor de guerra contra a França, com cujo governo revolucionário a Grã-Bretanha se achava então em conflito. (Aliás, isso mesmo é o que suscitaria, não muito tempo depois, a Heroica de Beethoven.) Haydn chegou a sofrer da parte dos que eram contrários à guerra a censura de suscitar entre o público tais sentimentos belicosos.
[16] Disse-se que Beethoven compôs (dois anos depois) a Sonata Patética sob influência deste movimento. É provável; mas, digamos, “exagerou”...
[17] Apenas cremos. Dudelsack é uma sorte de gaita de fole alemã, também chamada Schaeferpfeife (flauta de pastor) ou Sackpfeife.
[18] Alguns querem ver nesta sinfonia o ancestral da magnífica Sinfonia Nº. 2 em Ré Maior de Brahms – não sem razão, parece-nos.
[19] Aliás, é a mesma gravidade impressa por Klemperer à bachiana Missa em Si Menor. É interpretação insuperável, a nosso ver. 

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