O Haydn Sinfonista
C. N.
O
austríaco Franz Joseph Haydn (1732-1809) é um dos
dois principais compositores[1] do
Classicismo (o estilo que medeia entre o Barroco e o Romantismo), além de ser o inventor da sinfonia moderna.
Compôs 104 sinfonias
numeradas, e outras duas.[2]
Muitas se tornaram conhecidas por seu apelido: por exemplo, a Nº. 73 em Ré Maior (“A Caça”); a Nº. 85 em Si Bemol Maior (“A Rainha”); a
Nº. 92 em Sol Maior (“Oxford”); a Nº. 101 em Ré Menor (“The Clock”). Tais
apelidos recordam alguma impressão deixada por tais obras, ou alguma
circunstância de sua primeira execução, etc.
As primeiras datam de
1760. No entanto, conquanto seja o inventor desta grandiosa forma musical
moderna, suas primeiras sinfonias e tantas outras não merecem figurar entre o
melhor da arte sinfônica. São como exercícios para o que viria, e padecem não
raro da superficialidade que caracterizou parte da produção classicista. Eram,
se tal se pode dizer, peças aristocráticas tão delicadas como uma porcelana de
Sèvres, tão bordadas como um móvel Luís XV – ad nauseam –, e repletas tanto de alusões folclóricas e espirituosas
como de leve melancolia. São de um rococó après
la lettre.
Mas na segunda fase da
vida e da produção de Haydn o desenho de suas sinfonias começa a ampliar-se; sua
construção e sua orquestração tornam-se mais complexas; o que se expressa
faz-se mais profundo – por vezes, muito mais profundo. E, como atesta a quase
unanimidade dos estudiosos, sem dúvida alguma as mais importantes sinfonias
haydnianas são as doze (da 93 à 104) compostas para concertos em
Londres, e chamadas por isso mesmo “londrinas”.[3]
Passemos a descrevê-las sucintamente, mas de modo que contribua um pouco para
uma boa audição sua.[4]
Sinfonia
Nº. 93 em Ré Maior
Começa
de modo inusual: um adagio executado por
toda a orquestra em fortissimo sobre
três rés, dois dos quais com fermata.[5]
Mais famoso, porém, é o segundo movimento, Largo
cantabile, em cujo final a música se vai apagando ao som de delicados
toques de tímpano até que, inesperadamente, irrompe em fortissimo um fagote para simular... uma flatulência. Muitos o
julgam mais uma mostra do senso de humor, do sprit, do wit de Haydn. Nós, de seu
mau gosto de salão. Aliás,
sempre se disse que é por decoro que esta sinfonia não tem apelido, e não
porque não o inspire; e não poucos maestros procuraram minimizar nas salas de
concerto tal efeito do fagote. Mas por este mesmo efeito, além de outras
razões, é que não incluímos esta sinfonia entre as grandes do legado haydniano.
Observação. Muitos
assinalaram que tanto na arquitetura como na sonoridade geral desta sinfonia o
compositor se liberta da influência sinfônica de Mozart. Mas ele não deixa de
citar no quarto movimento o oboé do “Viva la libertà” de Don Giovanni.
Sinfonia Nº. 94 em Sol Maior [“A surpresa”]
Talvez
a mais conhecida das sinfonias de Haydn. Seu apelido deve-se ao surpreendente
golpe de tímpano ao fim dos quinze primeiros compassos em piano.[6]
Este andante se tece de quatro variações
e de uma coda[7]
sobre seu célebre tema (que Haydn reutilizaria, alterado, na ária do lavrador d’As Estações, um de seus oratórios).
Sinfonia Nº. 95 em Dó Menor
Distingue-se
do restante ciclo londrino por ser a única em modo menor[8] e por prescindir da introdução em adagio. Por outro lado, a forma fugada[9] do quarto movimento (Vivace)
tem muita semelhança com a belíssima Sinfonia
Nº 41 (a “Júpiter”) de Mozart.
Sinfonia Nº. 96 em Ré Maior [“O milagre”][10]
Apesar
da introdução em adagio, é sinfonia especialmente
alegre e luminosa graças, sobretudo, ao minueto
de sabor vienense: confirma-o o Ländler[11] de
seu trio, um solilóquio de oboé. Para a sensação geral de leveza, contribui
ainda o movimento final (Vivace – Vivace assai),
com a brevidade de seus motivos e a ausência de repetições.[12]
Sinfonia Nº. 97 em Dó Maior
Obra
muito recordada por particularidades do segundo movimento (Adagio ma non tropo) e do terceiro (Menuetto – Trio). O segundo tece-se de uma série de variações e de
coda. Na terceira, Haydn procura um efeito raro, a saber, uma sonoridade asperamente
metálica, mediante a indicação “al ponticello, vicino al ponticello, sul
ponticello” para os violinos. No final do trio
do Menuetto, outra indicação
autógrafa do compositor: “In octava Salomon solo ma piano”, para que o
violinista Johann Peter Salomon tocasse una oitava acima do restante dos violinos.
Sinfonia Nº. 98 em Si Bemol Maior[13]
Aqui
o compositor emprega pela primeira vez os trompetes em si bemol, o que então era
pouco usual. Parece que tomou a ideia da Sinfonia
Nº 36 de seu irmão Michael, estreada quatro
anos antes. Haydn repetiria o recurso na Sinfonia
Nº 102, em suas últimas missas e em algumas partes d’A Criação.
No
primeiro movimento, o adagio introduz
o tema que aparecerá no allegro.
O
segundo e elegíaco movimento (Adagio)
foi considerado por alguns como um lamento pela morte de Mozart; e um motivo
seu que lembra o tema principal do segundo movimento da Júpiter parece corroborá-lo.
O
longo quarto movimento (Presto) é o mais
ambicioso final de sinfonia haydniana, e conta, quase no fim, como um solo de fortepiano para o qual Haydn deixou indicação
autógrafa: “com precisão e delicadamente”.
A
Nº. 98 parece-nos um dos pontos altos
da arte sinfônica.
Sinfonia Nº. 99 em Mi Bemol Maior
Aqui
a orquestração apresenta novidades: antes de tudo, a estreia do clarinete na
produção sinfônica de Haydn. Mas também, no segundo movimento (Adagio), a intervenção dos trompetes, que
nunca haviam aparecido em nenhum movimento lento do Classicismo. Neste mesmo
segundo movimento, o tema principal é apresentado pelas cordas e ecoado pelas
flautas e pelos oboés, tema que de modo surpreendente é uma transposição para a
clave de sol das seis notas que ensejam o primeiro movimento (Adagio – Vivace assai). Depois, uma
passagem de dez compassos, a cargo unicamente dos sopros,[14] leva
à exposição do segundo tema, outra variação da introdução do primeiro movimento.
Belíssima.
Sinfonia Nº. 100 em Sol Maior [“Militar”]
Esta
é talvez a sinfonia de Haynd mais popularmente apreciada. Nela o compositor reciclou
um movimento inteiro de uma peça anterior, o Concerto para Duas Liras Hob. VIIh. 3; e é a esse movimento, o
segundo (Allegretto), que a peça deve
seu apelido. Segundo um costume de então, Haydn introduziu neste movimento, em
forma de lied, a chamada “percussão
turca” (composta de triângulo, pratos e bombo), a qual, ademais, reaparecerá no
quarto movimento (Finale: Presto).[15]
Mas
ainda mais interessante que o segundo movimento é o quarto, pelo solo de tímpano
de um compasso de duração e por sua prefiguração do desenvolvimento perpétuo.
Também
é obra-mestra.
Sinfonia Nº. 101 em Ré Maior [“The Clock”” = “O Relógio”]
Deve
o apelido a seu segundo movimento (Andante),
que efetivamente imita o som de um relógio mediante um ritmo pendular sustentado
por vários instrumentos, numa orquestração que se vai enriquecendo progressivamente
enquanto, sobre ela, os violinos tocam uma melodia suave. Por outro lado, todavia,
as dimensões do Minuetto parecem enquadrá-lo
já, de algum modo, na sinfonia romântica. É como que uma ruptura com a ordem própria
do Classicismo. Mas no quarto movimento
(Vivace) o compositor se mostra não
só senhor da forma (rondó-sonata), mas ainda do contraponto, para expressão de
alegria (com uma ponta de ironia). Aqui, ao contrário de antecipar o
Romantismo, Haydn como que retorna ao Barroco; e recorde-se que a grande arte
do contraponto será retomada, sim, por Beethoven (Missa solemnis, Große Fuge, etc.), mas sobretudo, em escala suprema, por Bruckner (e,
em decorrência, por Mahler e por Franz Schmidt). Romantismo e contraponto nem
sempre andaram parelhos.
Sinfonia Nº. 102 em Si Bemol Maior
Além
de algumas passagens que de algum modo antecipam a música de Beethoven, aluno
de Haydn, o ponto alto desta obra é o Adagio
(segundo movimento), com sua dupla exposição ornamentada por orquestração de grande
equilíbrio, mas muito original. Suas modulações eram inovadoras então, e há
ainda a famosa intervenção do trompete pouco antes do fim para prolongar um
acorde do conjunto da orquestra.
Sinfonia Nº. 103 em Mi Bemol Maior [“Rufar de Tambores”]
As
dimensões da orquestra (sessenta componentes) que deve executar esta sinfonia impressionaram
muito ao público que assistiu à sua estreia. A introdução em fortissimo com rufo de tímpanos, algo até
então nunca visto numa sinfonia, é a origem do apelido da obra. Após a introdução,
vem um sombrio adagio, em que os
instrumentos graves citam o Dies Irae.
Em seguida, o movimento desenvolve-se em forma sonata (em 6/8), com constantes
alusões ao tema introdutório e em tempo mais vivo.[16]
O
segundo movimento (Andante più tosto
allegretto) e o Finale (Allegro con spirito) empregam material
folclórico croata.
Para
nós, uma das mais belas.
Sinfonia Nº. 104 em Ré Maior [“Londres”]
Estruturada
em Adagio – Allegro, Andante, Menuetto: Allegro – Trio e Finale:
Allegro spiritoso, tem por ponto alto este mesmo Finale (em forma sonata), no qual um baixo de, cremos, Dudelsack[17] precede e sustenta um tema de caráter
aparentemente popular. Alguns acreditaram ver neste Finale uma como despedida do gênero da parte de Haydn, pela
deliberada retardação do movimento: com efeito, um tema (o B) elaborado em mínimas
e uma prolongada cadência quebrada retardam consideravelmente a reexposição.
Se
tal é certo, ou seja, se se trata de despedida, então o é em ponto maior:
verdadeira coroação.[18]
* * *
Discografia das Sinfonias Completas
• Philharmonia
Hungarica. Regente: Antal Doráti (Decca).
• Orquestra Austro-húngara
Haydn. Regente: Adam Fischer (Brilliant).
• Orquestra do Real
Concertgebouw. Regente: Colin Davis (Philips).
• Orquestra do Século
XVIII. Regente: Frans Brüggen (Philips).
Observação. Entre estas, a de
Doráti é a de nossa preferência. Mas também admiramos muito Haydn – Favourite Symphonies – Philharmonia Orchestra, com o regente alemão
Otto Klemperer. Sua interpretação
de oito sinfonias haydnianas foi não raro reprovada por romântica. Se tal é
fato, é-o para bem: porque a gravidade impressa por Klemperer a estas obras lhes
dá a profundidade que ainda lhes faltava – com o que já se mostra que não temos
nenhum pendor historicista.[19]
[1] O outro é Mozart.
[3] De nossa parte, acrescentamos-lhes a 88 e a 92. Mas uma das londrinas não nos pode agradar, e já diremos por
quê.
[4] Relembre-se que nesta série só
estudaremos mais detidamente, em grande detalhe, cada uma das sinfonias de
Bruckner, cada uma das de Mahler e cada uma das de Franz Schmidt – justamente,
para nós, os dois ápices da sinfonia, com Bruckner em primeiro plano –, além de
sinfonias isoladas de outros compositores. – Acrescente-se apenas que nem todas
as de Mahler são superiores. Mas nas que o são o compositor quase chega a ombrear-se
com Bruckner.
[5] Sustentação indeterminada
ou suspensão indeterminada de nota; e o sinal que as indica.
Também chamada coroa ou caldeirão.
[7] Seção conclusiva, que pode ser ou não
ser recapitulativa.
[8]
Mas este modo não se mantém ao longo da obra.
[9] Isto é, ao modo de fuga.
[10] Estranhamente, o apelido deve-se a
episódio sucedido durante a estreia em Londres não desta sinfonia, mas da No. 102. Nada que importe musicalmente.
[11] Popular
dança de origem austríaca, não muito movimentada e em compasso 3/4 ou 3/8. É precursora da valsa. Todos os
grandes compositores austríacos, incluído Bruckner (em scherzi), recorreram a ela.
[12] Desta fonte beberia alguma vez Mahler.
[13] A No.
4 de Beethoven inspira-se nesta sinfonia.
[14] Uma inovação na escrita sinfônica com
respeito a estes instrumentos.
[15] O propósito de Haydn
era tão somente produzir um efeito espetacular. Mas público presente à estreia
da sinfonia (em 31 de março de 1794) tomou-o como um clamor de guerra contra a França,
com cujo governo revolucionário a Grã-Bretanha se achava então em conflito. (Aliás,
isso mesmo é o que suscitaria, não muito tempo depois, a Heroica de Beethoven.) Haydn chegou a sofrer da parte dos que eram
contrários à guerra a censura de suscitar entre o público tais sentimentos belicosos.
[16] Disse-se que Beethoven compôs (dois anos
depois) a Sonata Patética sob influência
deste movimento. É provável; mas, digamos, “exagerou”...
[17] Apenas cremos. Dudelsack é uma sorte de gaita de fole alemã,
também chamada Schaeferpfeife (flauta de pastor) ou Sackpfeife.
[18] Alguns querem ver nesta sinfonia o ancestral
da magnífica Sinfonia Nº. 2
em Ré Maior de Brahms – não sem razão, parece-nos.
[19] Aliás, é a mesma gravidade impressa por
Klemperer à bachiana Missa em Si Menor.
É interpretação insuperável, a nosso ver.
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