Nota do editor do blog: João Ganzarolli é um estudioso das
artes, e publicará em 2015, pela Editora
da UFRJ, o livro Uma história da música polifônica: vozes
medievais que iluminaram o Ocidente, com prefácio de Dom Félix Ferrá e orelha de Marcelo
Coutinho. O artigo que aqui se publica foi-nos generosamente enviado pelo mesmo
João Ganzarolli, a quem o agradecemos.
* * *
POLIFONIA
onde, quando, como e por quê?§
João Vicente Ganzarolli de Oliveira
Professor do Centro de Tecnologia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro
A última palavra ainda não foi dita e
talvez nunca o seja quanto às origens da polifonia litúrgica ocidental. As incertezas
são muitas quando nos perguntamos pelo onde,
o quando, o como e o porquê de os clérigos
da Idade Média terem começado a misturar melodias dentro do mesmo intervalo de
tempo. Sabe-se que ela veio do Leste e já existia na Cristandade oriental do
século IV (possivelmente até entre os gregos antigos, conforme certas
indicações de Aristóteles, Aristoxeno e outros gigantes do paganismo helênico permitem
supor); mas carecemos da exatidão geográfica: Constantinopla, Alexandria e a
longínqua Geórgia são pontos prováveis dessa irradiação. Tampouco se pode
afirmar com segurança onde essas luzes brilharam pela primeira vez: Milão, Roma
e Metz disputam a primazia.
É incontestável que Jesus
e São Paulo cantavam, e que, para os primeiros cristãos, cantar e rezar era o
mesmo (cf. At 16,25; Ef 5,19; Col 3,16; Mt 26,30; e 1 Cor 10: 17). É uma
identidade que tem raízes mais profundas, e que vemos reiterada pelo neoplatônico
egípcio Plotino (séc. III d.C.), autor do sistema filosófico mais
espiritualizante de toda a Antiguidade (cf. Porfírio. Vita Plotini, I, 1). Datam do século IX os tratados Musica enchiriadis e o Scolica enchiriadis, nos quais se
encontram as mais antigas partituras de música polifônica ocidental. É nítido
que eles se completam, mas permanecem dúvidas quanto à sua autoria (Ubaldo de
Saint-Amand [c.840-930], Santo Odo de Cluny [878-942], outros sábios
carolíngios?); não sabemos nem mesmo se foram escritos pelo mesmo autor ou se
houve parceria na composição de um deles ou de ambos.
É forte a hipótese de a
Capela Pontifícia do Papa Vitaliano (657-672) ter sido embelezada com música
polifônica. Quem, senão praticantes da polifonia mediante quartas, quintas e oitavas
paralelas, foram os cantores parafonistae
referidos nas Ordines romani? É
enorme a dívida que os pioneiros da polifonia têm para com os santos intelectuais
e inovadores do século IV, em particular Efrém Siríaco, Hilário de Poitiers e
Ambrósio de Milão (que visitaram Santo Efrém na Síria, cujo modus cantandi, ainda monofônico, devem
ter assimilado) – sem esquecer que, já no século I, o Mediterrâneo ocidental
começara a ser semeado pelos primeiros evangelizadores, que não levavam consigo
“bolsa, alforje nem sandálias” (Lc 10, 4), mas traziam na ponta da língua os
cantos das igrejas das igrejas-sinagogas de Jerusalém e de Antioquia. Desse
modo, obedeciam duplamente a Jesus, o primeiro cantor cristão. Eis a cellula mater dos diversos cantos a uma
só voz (velho romano, ambrosiano, hispânico, galicano, celta, beneventano) executados
nas igrejas do oeste europeu nos primeiros séculos do Cristianismo.
O nome “gregoriano” é homenagem provável a São Gregório Magno (papa entre 590 e
604), que reestruturou a liturgia católica, simplificando-a (beneditino,
almejava retornar ao modus vivendi dos
primeiros cristãos), mas não diretamente a música. Promotor efetivo desta
segunda reforma foi Pepino, o Breve (rei dos francos de 751 a 768), pai de
Carlos Magno e do próprio Renascimento Carolíngio, que precedeu em meio milênio
a Renascença propriamente dita, na qual brilharam Giotto, Dante, Leonardo,
Michelangelo e Rafael. Pepino escolheu como base o canto velho romano;
misturado com o galicano (cantado havia séculos pelos “gauleses” [i.e., os
francos]), tornou-se “gregoriano” por convenção e dele nasceram as partituras
polifônicas que vemos no Musica
enchiriadis e no Scolica enchiriadis.
Sabemos que Agostinho de Hipona (354-430) – santo, discípulo de
Ambrósio e possivelmente o intelectual que mais influência teve sobre a cultura
ocidental (cf. Emil Franzel. Geschichte des deutschenVolkes, Munique, Adam Kraft, 1974, pp. 19-20)
– interessava-se muito por música (vejam-se os ensaios de Eustaquio Uriarte: “La
música según San Agustín”, in Revista
Agustiniana, nº IX, Madri, 1885, pp. 418-425 et passim; e “San Agustín
Músico”, in Revista Agustiniana, nº
XIII, Madri, 1887, pp. 528-532). Não se
destacou como intérprete, mas deixou contribuições fundamentais como escritor.
Seu diálogo De musica, além de nos
transmitir a compreensão da métrica da poesia latina, fala da arte musical como
via de ascensão ao Criador: a corporalibus ad
incorporalia, repetirá o Ocidente durante os mil
anos que separam da Era Moderna este protomedieval que foi Agostinho. Ubíquo no
Medievo, o De Musica parece ter
influído na rítmica modal da polifonia praticada pela Escola de Notre Dame, no
século XII. Antes mesmo, os carolíngios fizeram dele seu livro de cabeceira. É
amparado por Agostinho que Escoto Eriúgena (815-877) compara a beleza do
Universo criado por Deus a uma orquestra harmoniosa em que cada instrumento
toca uma melodia diferente (cf. PL 122, 638).
Como se isso não
bastasse, as Confessiones agostinianas
fornecem, no livro XI, as bases originalíssimas para o tratamento do tempo comoentidade autônoma e mensurável, consequentemente
propícia como nenhuma outra para a inserção de melodias independentes
destinadas a formar um só composto sonoro, como é o caso da polifonia. É
não só um marco-zero para a História da Música, mas também para a Física e a
História da Ciência (cf. Géza Szamosi. Tempo
& espaço: as dimensões gêmeas [trad. J. E. fortes e C. A. Medeiros],
Rio de Janeiro, Zahar, 1988, p. 101et passim). Só mesmo a Bíblia foi mais
popular que os livros de Agostinho entre os leitores da Idade Média. É insustentável
a hipótese de que os primeiros compositores ocidentais de polifonia – todos
eles clérigos e letrados – desconhecessem a concepção temporal agostiniana; e é
quase impossível não terem percebido a sua utilidade imediata como base da
textura polifônica.
Às portas do Medievo,
enquanto Agostinho falava-nos dessas coisas nas costas ocidentais do
Mediterrâneo, seu duplo do leste, o
bizantino Dionísio Areopagita, complementava-as com a ideia de que é necessário
haver uma hierarquia entre os anjos, criaturas unicamente espirituais que se
colocam na ordem do Ser entre os homens e Deus. É um tema que encontrará
ressonância enorme no Ocidente do século IX em diante. O escolástico Santo
Tomás de Aquino – que sabia Agostinho de cor e conhecia bem os fundamentos
teóricos da polifonia (cf., por exemplo, In
octolibros de physico audito sive physicorum Aristotelis, l. II, lectio 5)
– talvez deva a Dionísio a ideia de que a voz humana é a fonte primordial de
toda e qualquer forma de música, inclusive a instrumental (cf. De anima, II, lectio 18). Inegável é
que, com o De caeleste hierarquia atribuído
a Dionísio, a cosmologia mítica transformou-se em teologia cristã; Bizâncio
sobrepujou a Grécia antiga e os planetas inteligentíssimos de Aristóteles foram
substituídos pelos Serafins, Querubins,
Tronos e Potestades. A “música
das esferas” defendida pelos pitagóricos e pelos platônicos deu lugar à música
dos anjos. Noutras palavras, os bizantinos resolveram “imitar os cantos divinos
entoados pelos anjos do Céu” (Egon Joseph Wellesz [apud Gustave Reese. La musica nel Medioevo {trad. Flora Levi
d’Ancona}, Florença, Sansoni, 1980, p. 98 et passim]).
Devem-se a Eriúgena a
tradução do grego para o latim da obra de Dionísio e diversos comentários a
ela. Seguindo as pegadas do bizantino, o célebre irlandês deixou claro que as
consonâncias de quarta, quinta e oitava não são produzidas por planetas, como
divulgaram os pitagóricos e os platônicos; possivelmente acreditou que seus
reais emissores são os anjos, o que nos permite concluir que tanto os organa dos tempos carolíngios quanto os
motetos e missas futuras de Palestrina e de Bach nada mais são do que o simulacro
(e nisso Platão estará certo) da música angélica, escutada pelos anjos, por Deus
e pelos bem-aventurados.
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