C. N.
A série de postagens que se inicia aqui será de certo modo parte de
um livro que pretendo concluir brevemente. Nesta série, analisar-se-ão
uma a uma as obras sinfônicas de Anton Bruckner (Áustria, 1824-1896). Nela não
insistirei em que julgo o ciclo de sinfonias de Bruckner a cúspide da música
orquestral e sinfônica, e em que ao Austríaco o incluo entre os maiores artistas
de todos os tempos. Destes pontos, tratarei a fundo no referido livro; mas já o
fiz algo aprofundadamente, ou reproduzi textos de outros que o fazem, em diversos
artigos desta página.[1]
Antes da análise de cada uma das sinfonias
brucknerianas – cuja reprodução aqui visa a facilitar a audição destas peças –,
porei algumas palavras minhas, à guisa de introdução. Mas as análises mesmas
serão traduções das feitas por P.-G. Langevin em seu livro Bruckner (Lausanne, l’âge d’homme,
1977, 384 pp.). Não deixarei todavia de intervir, entre colchetes, sempre que
me parecer necessário, a título ou de complementação, ou de discrepância com o
autor.
Começamos hoje com a primeira parte das primícias do Bruckner sinfônico.
As primícias (I)
Bruckner, como se dirá mais detidamente no referido
livro, retirou-se por muito tempo para o aprendizado tenaz e paciente da
composição musical, especialmente a orquestral.[2]
Mas este mesmo tempo se divide em duas fases. Na primeira, muito mais longa que
a outra, Bruckner faz-se senhor de todas as sutilezas da escritura
contrapontística e clássica. A segunda, ao fim da qual “a crisálida enfim se
rompe” (Langevin), dura dois anos: é o tempo da metamorfose, sob a batuta de
Otto Kitzler (1834-1915), e pelo contato com a música de Wagner (cuja influência
sobre Bruckner, como o mostraremos no lugar já referido, se não é desprezível –
sobretudo em termos de orquestração e de certos temas –, sempre foi porém demasiado
encarecida).[3]
Foi durante essa segunda fase que Bruckner compôs as
primícias de sua arte sinfônica: três Marchas;
três Peças de Orquestra; uma Abertura; e a Sinfonia de Estudo em fá
menor, também conhecida por 00.[4]
Cada uma destas obras tem apenas uma redação (se se excetuam as correções de
Kitzler à sinfonia).[5]
Os manuscritos de todas estas peças de estudo, confiou-os tardiamente Bruckner
a um aluno seu, que os legou à cidade de Viena. Quanto à edição, terão destino
diverso, que se irá precisando aqui.
1. Três Peças de Orquestra (G. A. 62); três Marchas (G.A. 60, 61, 73)
Estas peças, todas de 1862, aparecem pela primeira
vez no segundo volume de inéditos de Goellerich. São, repita-se, a estreia de Bruckner na
composição propriamente dita para orquestra: anteriormente, com efeito, não o
havia feito senão para acompanhamento de páginas corais, etc. “Aqui”, escreve
Langevin, “trata-se da orquestra beethoveniana normal, e Bruckner parece ter
tomado por modelo os interlúdios escritos por Kitzler para suas representações teatrais.”
Prossegue Langevin:
«A primeira [das Três Peças de Orquestra], Moderato, em mi bemol (36 compassos, C [= 4/4]), é a mais interessante pela ressonância
já “bruckneriana” do primeiro tutti (comp. 6), com sua modulação em dó maior. A segunda, em mi menor (48 compassos, C), é eminentemente
schubertiana pela sonhadora melodia do oboé sustentado pelo fagote: até em seu
breve crescendo central, tomar-se-ia por algum entreato desconhecido de Rosamunde. [Vejo também aí, todavia, uma semelhança de Bach.] A última, em fá maior (66 compassos ¾, incluído o da
capo), impressiona por seu início veemente e reveste-se da forma de um breve
Scherzo com seu Trio: este se distingue pelo acompanhamento sincopado das
cordas, o qual já se encontrava no Requiem
e voltará a encontrar-se no nosso músico.
A estas peças associa-se geralmente a Marcha em ré menor, G. A. 61,
imediatamente anterior, e que assume igualmente uma forma tripartite, nitidamente
mais desenvolvida. De cor local muito acusada [ou seja, a cor austríaca ou vienense, quase sempre de algum modo presente na música bruckneriana], segue-se a outra marcha militar escrita
por Bruckner com o título de Apollo-Marsch (primeiro ensaio de instrumentação para metais,[6]
seguido em 1865 de uma última Marcha,
igualmente em mi bemol). Estas três
marchas figuram também nos anexos de Goellerich, em redução pianística. Na Marcha em ré menor, já encontramos [...]
o protótipo de todos os futuros Scherzi brucknerianos; ela é interessante
também pela similitude de seu tema com o tema inicial da Primeira Sinfonia. As outras duas são curiosos exemplos de música
militar vienense, próximas de [Franz von] Suppé; no entanto, a autenticidade da
Apollomarsch não é certa.»[7]
(Continua, com a segunda parte das Primícias.)
[1] Cf. especialmente: Bruckner: música maior e
católica em meio ao romantismo; Que tem da música de Bruckner a
música de Egon Wellesz?; A música majestosa de Franz
Schmidt; “Bruckner era ‘demasiado’
católico para os moldes do Romantismo musical”; A arte sinfônica de Anton
Bruckner: o cume da música instrumental; Por que e em que sentido
dizemos que Dvořák é superior a Bruckner na música religiosa; A “Oitava Sinfonia” de Bruckner (e um vídeo com Karajan e a
Filarmônica de Viena interpretando-a); A “Oitava Sinfonia” de Bruckner
– outro monumento musical; Bruckner por Celibidache – a música em ordem à eternidade;
Gunter Wand & Orquestra
Filarmônica de Berlim: Anton Bruckner, Sinfonia n. 9; Um acabamento da inacabada
“Nona Sinfonia” de Bruckner.
[2] E também nisto se
assemelha a outro católico e grande compositor, César Franck. “Muitos
comentadores”, escreve Langevin, “sublinharam o paralelo entre os dois grandes
músicos”. Tratá-lo-emos no livro.
[3] Vide especialmente a comparação que faz Mauro Machado Coelho (em Bruckner, o Menestrel de Deus) entre os
dois compositores. Voltarei a tratá-lo aprofundadamente no livro. – Aquele demasiado
encarecimento da influência de Wagner sobre Bruckner resulta de uma visão
historicista da arte (e da música): cada compositor estaria para os que o influenciaram
como uma fatal continuidade histórica, e não, como de fato se dá, como síntese absortiva das mesmas influências, não necessariamente superior a estas. No caso de
Bruckner, como se verá no devido lugar, não só se trata de síntese (analogamente
a como a doutrina de Santo Tomás de Aquino é uma síntese – não um mosaico – de tudo quanto de verdadeiro a antecedeu), mas esta
síntese sinfônica é superior a toda a influência musical que ela absorveu.
[4] Poder-se-iam incluir
entre tais primícias ainda um Quatuor
e um Rondó.
[5] Como se verá, as futuras
sinfonias de Bruckner como que se esgarçam entre vários manuscritos e edições.
[6] A título de ilustração para os
iniciantes, diga-se que uma orquestra sinfônica se compõe de cinco classes ou seções de instrumentos:
• as cordas
(violinos, violas, violoncelos, contrabaixos, harpas, etc.);
• as madeiras
(flautas, flautins, oboés, corne-inglês, clarinetes, clarinete baixo, fagotes, contrafagotes);
• os metais
(trompetes, trombones, trompas, tubas [em Wagner e em Brukner, tubas
wagnerianas]);
• os instrumentos
de percussão (tímpanos, triângulo, caixas, bombo, pratos, carrilhão
sinfônico, etc.);
• os instrumentos
de teclas (piano, cravo, órgão).
Os metais serão centrais na orquestração sinfônica
bruckneriana: chamo-os aí “as trombetas da fé”.
[7] Links quanto a esta Marcha:
• Military
march (Bruckner): Scores at the International Music Score
Library Project.
• Marsch Es-Dur,
WAB 116 Critical discography by Hans Roelofs (German).
• A
performance of Bruckner’s Military march by the United States Coast Guard Band can
be heard on John Berky's website: March
in E Flat, October 2013.
• Another
performance by the Tokyo Wind Sinfonica can be heard on YouTube: Marsch in Es-Dur (WAB 116),
January 2015.
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