quinta-feira, 29 de setembro de 2016
domingo, 25 de setembro de 2016
“Wit”, de Mike Nichols – uma película surpreendente
Carlos Nougué
Memento mori.
Mike Nichols (Berlim,
1931-Nova York, 2014) foi um dos cineastas que introduziram a revolução
marcusiana no cinema americano: são dele The
Graduate (A Primeira Noite de um
Homem), Carnal Knowledge (Ânsia de Amar) e The Birdcage (A Gaiola das
Loucas), entre outras. Não era destituído de talento, mas o fim de seus
filmes o condenava à cloaca das artes.
Um dia, porém, chamou-me
um amigo a ver Wit (2001, telefilme
baseado numa peça de Margaret Edson), do mesmo Mike Nichols e com a atriz
inglesa Emma Thompson – e o filme surpreendeu-me muito, por várias razões.
Antes de tudo, porque se
trata de filme de fundo religioso, cristão, como se patenteia em uma de suas
últimas cenas (a da visita à moribunda de uma antiga professora sua), cena
inesquecível. A ideia orgânica do filme é exatamente esta: a salvação, in articulo mortis, de uma ovelha
desgarrada. A personagem principal, uma professora universitária de literatura
(Emma Thompson), inglesa, ateia e cheia de wit
(esprit, espirituosidade, essa nota tão
característica da alma inglesa de tempos atrás), descobre-se com câncer muito
grave. A partir daí, boa parte da película se desenrolará num monólogo impressionante
de Thompson em close, dirigindo-se sempre
à câmara – e isto sem resvalar a película para algo anticinematográfico. Com
efeito, em mãos menos hábeis (e é sobretudo aqui que surpreende Nichols) tal
recurso faz fracassar artisticamente um filme. – Mas a película conta ainda com
a beleza da trilha sonora: músicas de Arvo Pärt, de Henryk
Górecki e de Dmitri Shostakovich.
Duas notas negativas,
porém.
• Uma intrínseca: ao
final da película, uma cena mostra os seios da protagonista. É o mesmo problema de Nostalgia, de Andrei Tarkovski (para
entender o que digo, vide “Nostalgia”, de Andrei Tarkovski e “Rope”: uma pérola de Alfred Hitchcock). É
verdade que, como em Nostalgia, a
cena não se reveste de nenhum erotismo intencional. Mas isto não elimina o
problema.
• A outra extrínseca: no
Brasil, teve-se o péssimo gosto de dar ao filme um título com sabor de “autoajuda”
(Uma Lição de Vida). Mas não, de modo
algum: trata-se de uma como lição de
morte (até porque o filme não deixa de assinalar, crítica e precisamente,
o mascaramento da morte pela indústria médica). – Isso me lembra, aliás, algo
que me sucedeu a mim mesmo. Traduzi cartas de Sêneca a Lucílio na quais o
estoico defende o suicídio (parece que depois o filósofo mudou de parecer, mas
Nero acabou por condená-lo a suicidar-se...). Pois bem, qual não foi meu
assombro ao ver que o título comercial dado ao livro foi Aprendendo a Viver!?
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Carlos Nougué
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domingo, 18 de setembro de 2016
"A Morte — O Sol do Terrível", um dos mais belos poemas de Ariano Suassuna
A Morte — O Sol do Terrível
Ariano
Suassuna
Com tema de Renato Carneiro Campos
Mas eu enfrentarei o Sol divino,
o Olhar sagrado em que a Pantera arde.
Saberei porque a teia do Destino
não houve quem cortasse ou desatasse.
Não serei orgulhoso nem covarde,
que o sangue se rebela ao toque e ao Sino.
Verei feita em topázio a luz da Tarde,
pedra do Sono e cetro do Assassino.
Ela virá, Mulher, afiando as asas,
com os dentes de cristal, feitos de brasas,
e há de sangrar-me a vista o Gavião.
Mas sei, também, que só assim verei
a coroa da Chama e Deus, meu Rei,
assentado em seu trono do Sertão.
Mas eu enfrentarei o Sol divino,
o Olhar sagrado em que a Pantera arde.
Saberei porque a teia do Destino
não houve quem cortasse ou desatasse.
Não serei orgulhoso nem covarde,
que o sangue se rebela ao toque e ao Sino.
Verei feita em topázio a luz da Tarde,
pedra do Sono e cetro do Assassino.
Ela virá, Mulher, afiando as asas,
com os dentes de cristal, feitos de brasas,
e há de sangrar-me a vista o Gavião.
Mas sei, também, que só assim verei
a coroa da Chama e Deus, meu Rei,
assentado em seu trono do Sertão.
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Carlos Nougué
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quarta-feira, 14 de setembro de 2016
“Rope”: uma pérola de Alfred Hitchcock
Carlos Nougué
Baseado
num caso verídico (o de “Leopold e Loeb”, dois estudantes da Universidade de Chicago que em
1924 mataram Bobby Franks, de 14 anos de idade, apenas pela vontade de cometer
um crime perfeito),[1]
Rope (“Corda”, e no Brasil Festim Diabólico) é uma parábola contra
o nietzschianismo e sua raça de homens superiores. Mas não só isso: o par de homossexuais e nietzschianos (Brandon e
Philip) que no filme comete o que julga um assassinato perfeito aprendeu o nietzschianismo na universidade, vive no meio de uma sociedade fútil e
vale-se em seu ato macabro de uma como missa negra.
O cinema de Hitchcock é excelente em
duplo sentido.
1)
Antes de tudo, em termos técnicos, é muito superior ao mesmo cinema americano
em geral. Neste, e neste sentido, talvez só o cinema de John Ford consiga
equiparar-se ao de Alfred
Hitchcock.
Naturalmente, ambos estes cinemas não deixam de ter o selo da sociedade
americana, conquanto Ford fosse de família irlandesa, Hitchcock fosse inglês, e ambos fossem católicos (ainda que não raro impregnados de liberalismo).
E naturalmente ambos estes cinemas são muito diferentes do de um Tarkovski ou
do de um Ozu. Mas, em princípio, tal diferença não se dá em detrimento de um
lado nem de outro. – No caso de Rope,
que foi o primeiro filme
colorido do diretor,[2]
destaca-se o ter sido todo rodado em tomadas contínuas de cerca de dez minutos
(ou seja, em planos-sequência), com somente oito cortes, mas editados de modo tal,
que se tem a impressão de não ter havido corte algum durante a filmagem.[3] Não é
recurso gratuito: ao contrário, perfeitamente adequado à ideia orgânica do
filme, eleva ao ápice o que talvez se possa dizer o mais próprio do cinema, ou
seja, a mobilidade da câmara, que funciona em Rope como se fora um olho onisciente e onipresente.
2) Depois,
apesar das marcas do liberalismo e de sua aparência de mero espetáculo de
suspense, os filmes de Hitchcock desenvolvem-se não raro em torno de alguma
ideia cristã: queda, punição, redenção, sobretudo. Em suma: são filmes (muitos,
não todos) que se valem de recursos artísticos de fácil assimilação com um fim,
em princípio, bom. – Aliás, tampouco o ser de fácil assimilação para muitos ou o
sê-lo só para poucos são diferenças que impliquem por si superioridade para qualquer
dos dois lados. Com efeito, quantos podiam (ou podem) ler a Eneida? Os vitrais das catedrais góticas,
por outro lado, perdem nobreza artística por serem de imediata compreensão para
todos?
Mas o
que mais importa dizer aqui é que Rope
alcança perfeitamente o duplo objeto artístico e cumpre perfeitamente seu fim:
é uma primorosa fábula moral. Mais que isso, porém: não incorre no principal
defeito do cinema de Alfred Hitchcock,[4] a saber,
o erotismo. Bem sei que este é hoje assunto espinhoso: vivemos numa sociedade
hipererotizada. Se porém o estudo desta sociedade deve fazer-se em outro âmbito
(ético, político, teológico), pode-se perfeitamente negar a validade do
erotismo já no mesmo âmbito artístico, e em especial no cinematográfico. Com
efeito, dado tudo o que implicam de
voraginoso, o erotismo e o sexo numa obra literária não podem senão
distrair o leitor do fim desta: e tal distração ou desvio é em si mesmo
artisticamente falho.[5]
Imagine-se agora a voraginosa capacidade de distração que o erotismo tem numa
arte tão radicalmente realista como o cinema: um beijo longo e filmado em close (como os que maculam Vertigo, do mesmo Hitchcock) não pode
deixar de ser um beijo real. Um
assassinato no cinema (como o de Rope)
não é real, e todos os que assistem a um assassinato no cinema sabem que não é
real.[6] Mas uma
cena erótica como um beijo de Vertigo
não só não pode deixar de ser real, senão que arrasta em sua voragem a
assistência: e isto é desviar, em Vertigo
por exemplo, do fim do filme. Ora, um meio que desvie ou distraia do fim é um mau meio, e
por isso mesmo, se se dá numa obra de arte, a arruína.[7]
Para
um termo de comparação, e para terminar este artigo: note-se a delicadeza e a
elevação verdadeiramente artísticas com que Andrei Tarkovski filma – “metaforicamente”
– um ato conjugal nesta cena, e ter-se-á a dimensão de quão
nefasto é o erotismo nas artes em geral e no cinema em especial.
[2] Também a cor, nos
filmes de Hitchcock, é tratada de modo estritamente artístico e expressivo.
[3] Na época, os rolos não podiam
filmar mais que dez minutos.
[5] Se porém determinada
obra tem por fim o mesmo erotismo, então nem será obra de arte por nenhum aspecto.
[6] Embora tampouco seja
conveniente um assassinato no cinema se não se faz com decoro. (Para decoro, vide “Vá e Veja”, de Elem Klimov.) Além disso, naturalmente,
filmes como Rope ou como Vá e Veja
não devem ser vistos por pessoas de qualquer idade. Aliás, numa sociedade devidamente
ordenada, dir-se-ia que não devem ser vistos senão por pessoas virtuosas. Ou se
negarão os abismos de perversidade em que é capaz de engolfar-se uma alma não virtuosa ante o menor estímulo?
[7] Lembre-se que o fim das
artes do belo em geral é fazer tender ao bem e
ao verdadeiro mediante o belo e fazer afastar-se do mal e do falso mediante o
horroroso.
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Carlos Nougué
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sábado, 10 de setembro de 2016
Da Arte de Traduzir
Carlos Nougué
I
A Tradução, arte subalternada à Linguagem e à Gramática, tem
por duplo objeto 1) o discurso ou o texto por traduzir e 2) seu destinatário, ou
seja, fazer compreensível a este, em sua língua, o dito ou o escrito em outra
língua; e tem por fim contra-arrestar a própria multiplicidade das línguas. Com
efeito, a linguagem visa à comunicabilidade universal entre os homens – ou seja,
a atender à sua natureza social e política –, e a multiplicidade linguística vai
a contrapelo dessa tendência e natureza, razão por que diz com toda a razão
Aristóteles que os que falam línguas diferentes não convivem bem.[1]
II
Mas a Tradução é um gênero que se divide em duas espécies: a
Tradução Oral e a Tradução Escrita. Esta, por sua vez, também é gênero de duas
espécies: a Tradução Stricto Sensu e
a Tradução Literária. Esta última,
todavia, é igualmente um gênero, que, por seu turno, se divide em três espécies:
a Tradução Poética, a Tradução Dramática e a Tradução de Prosa Literária.
Ademais, e para complicar um pouco o assunto, muitos filósofos, teólogos,
historiadores... se valem de recursos literários como arte aplicada, com o que
o que os traduz tem de valer-se de recursos tradutórios hauridos da Tradução
Literária. Como se fora pouco, todo tradutor multilíngue sabe que uma coisa é
traduzir do espanhol ao português, outra do francês ao português, outra do latim
ao português... Que não implicará, então, traduzir do chinês ao português!
O que porém distingue exatamente a Tradução Stricto Sensu e a Tradução Literária? E de que necessita o tradutor
para ser tradutor literário?
III
A Tradução Stricto Sensu
simplesmente verte[2] a determinada
língua o escrito em outra língua. Mas a Tradução Literária, se igualmente verte
a determinada língua o escrito em outra língua, não o faz senão enquanto ambas as
línguas são mera matéria para outra arte: a Poética.[3]
Com efeito, como escrevi na Suma Gramatical
da Língua Portuguesa ao tratar da
pontuação, “há que repetir: à Poética, o poético. E
repetimo-lo até porque, ainda que lido, qualquer conjunto de versos entre dois
sinais de pontuação final tem entoação ditada não principalmente pela expressão
de ideias ou de sentimentos, mas por sua mesma forma poética (no caso
d’Os Lusíadas, epopeia vazada em versos decassílabos heroicos, ou seja,
aqueles em que o acento tônico recai na sexta e na décima sílaba). O exemplo d’Os Lusíadas pode
dizer-se frase,
sim, mas apenas analogicamente, porque a frase propriamente dita, com seu sinal de
pontuação final, é signo de algo dito com certa entoação linguística, ao passo
que a frase camoniana é signo de algo dito, antes
de tudo, insista-se, com certa entoação
poética”. Que quero dizer aqui com tudo isso?
Que, conquanto o tradutor literário verta a dada língua outra língua, não o faz
senão para manter a forma literária que se valeu desta outra
língua como de sua matéria. Naturalmente, tal fim – manter a forma literária vazada em outra língua –
é perfeitamente “assimptótico”,[4]
e o grau de seu êxito depende de múltiplas variáveis, como a distância entre as
línguas entre as quais se fará o trânsito tradutório: com efeito, é muito mais
fácil manter a forma literária quando
se traduz do espanhol ao português do que quando se traduz do japonês ao português.
IV
O tradutor literário supõe uma série de predisposições e de domínios:
capacidade para traduzir e certa capacidade literária,[5]
domínio da gramática e da literatura tanto da língua para a qual traduz como
da(s) língua(s) das quais traduz... – e radical humildade, porque a Tradução Literária
não é mais que um ofício serviçal: está a serviço da arte alheia.
V
Pois bem, é de tudo isso e de muito mais – os princípios e as
técnicas da Tradução Literária – que tratarei no curso online de três aulas (de duas horas cada uma) O Que É a Tradução Literária:
que começará na próxima quinta-feira. Nele tentarei transmitir
minha experiência de tradutor literário de várias línguas ao português que
conta em sua bagagem mais de trezentos livros traduzidos, de Quevedo a Cícero,
de Cervantes a Santo Tomás de Aquino.
Em outubro, ademais, ministrarei outro curso de
características similares, mas sobre a Tradução
[em geral] do Espanhol ao Português:
Os dois cursos
ministrar-se-ão pela Escola de Tradutores:
Muito obrigado desde já
aos que se inscreverem.
[1] Estudo-o detidamente tanto na Suma Gramatical da Língua Portuguesa (É
Realizações) como no primeiro opúsculo de Estudos
Tomistas (Edições Santo Tomás), “Gramática, Arte Subalternada à Lógica”.
[2] Não há a menor
distinção semântica entre traduzir, transladar e verter.
[3] A Poética constitui um
gênero cujas espécies são justamente a Poesia, o Drama e a Prosa Artística.
[4] Em geometria, assímptota é a reta que se
aproxima indefinidamente de determinada curva sem que, todavia, haja
possibilidade de as duas virem a coincidir.
[5] Não necessariamente o
tradutor literário há de ser, ele mesmo, escritor literário. Por vezes, aliás,
sê-lo dificulta o assumir a “personalidade” artística do escritor que se traduz.
Basta que o tradutor seja ótimo leitor literário, saiba escrever em geral e tenha desenvolvido a capacidade de traduzir. Com efeito, a arte de traduzir é um hábito intelectual distinto do da arte literária. Mas nada impede que um escritor literário também tenha
capacidade tradutória e, pois, capacidade para despir-se de sua “personalidade” artística
a fim de revestir-se da de outro.
Postado por
Carlos Nougué
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quinta-feira, 8 de setembro de 2016
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