Carlos Nougué
Baseado
num caso verídico (o de “Leopold e Loeb”, dois estudantes da Universidade de Chicago que em
1924 mataram Bobby Franks, de 14 anos de idade, apenas pela vontade de cometer
um crime perfeito),[1]
Rope (“Corda”, e no Brasil Festim Diabólico) é uma parábola contra
o nietzschianismo e sua raça de homens superiores. Mas não só isso: o par de homossexuais e nietzschianos (Brandon e
Philip) que no filme comete o que julga um assassinato perfeito aprendeu o nietzschianismo na universidade, vive no meio de uma sociedade fútil e
vale-se em seu ato macabro de uma como missa negra.
O cinema de Hitchcock é excelente em
duplo sentido.
1)
Antes de tudo, em termos técnicos, é muito superior ao mesmo cinema americano
em geral. Neste, e neste sentido, talvez só o cinema de John Ford consiga
equiparar-se ao de Alfred
Hitchcock.
Naturalmente, ambos estes cinemas não deixam de ter o selo da sociedade
americana, conquanto Ford fosse de família irlandesa, Hitchcock fosse inglês, e ambos fossem católicos (ainda que não raro impregnados de liberalismo).
E naturalmente ambos estes cinemas são muito diferentes do de um Tarkovski ou
do de um Ozu. Mas, em princípio, tal diferença não se dá em detrimento de um
lado nem de outro. – No caso de Rope,
que foi o primeiro filme
colorido do diretor,[2]
destaca-se o ter sido todo rodado em tomadas contínuas de cerca de dez minutos
(ou seja, em planos-sequência), com somente oito cortes, mas editados de modo tal,
que se tem a impressão de não ter havido corte algum durante a filmagem.[3] Não é
recurso gratuito: ao contrário, perfeitamente adequado à ideia orgânica do
filme, eleva ao ápice o que talvez se possa dizer o mais próprio do cinema, ou
seja, a mobilidade da câmara, que funciona em Rope como se fora um olho onisciente e onipresente.
2) Depois,
apesar das marcas do liberalismo e de sua aparência de mero espetáculo de
suspense, os filmes de Hitchcock desenvolvem-se não raro em torno de alguma
ideia cristã: queda, punição, redenção, sobretudo. Em suma: são filmes (muitos,
não todos) que se valem de recursos artísticos de fácil assimilação com um fim,
em princípio, bom. – Aliás, tampouco o ser de fácil assimilação para muitos ou o
sê-lo só para poucos são diferenças que impliquem por si superioridade para qualquer
dos dois lados. Com efeito, quantos podiam (ou podem) ler a Eneida? Os vitrais das catedrais góticas,
por outro lado, perdem nobreza artística por serem de imediata compreensão para
todos?
Mas o
que mais importa dizer aqui é que Rope
alcança perfeitamente o duplo objeto artístico e cumpre perfeitamente seu fim:
é uma primorosa fábula moral. Mais que isso, porém: não incorre no principal
defeito do cinema de Alfred Hitchcock,[4] a saber,
o erotismo. Bem sei que este é hoje assunto espinhoso: vivemos numa sociedade
hipererotizada. Se porém o estudo desta sociedade deve fazer-se em outro âmbito
(ético, político, teológico), pode-se perfeitamente negar a validade do
erotismo já no mesmo âmbito artístico, e em especial no cinematográfico. Com
efeito, dado tudo o que implicam de
voraginoso, o erotismo e o sexo numa obra literária não podem senão
distrair o leitor do fim desta: e tal distração ou desvio é em si mesmo
artisticamente falho.[5]
Imagine-se agora a voraginosa capacidade de distração que o erotismo tem numa
arte tão radicalmente realista como o cinema: um beijo longo e filmado em close (como os que maculam Vertigo, do mesmo Hitchcock) não pode
deixar de ser um beijo real. Um
assassinato no cinema (como o de Rope)
não é real, e todos os que assistem a um assassinato no cinema sabem que não é
real.[6] Mas uma
cena erótica como um beijo de Vertigo
não só não pode deixar de ser real, senão que arrasta em sua voragem a
assistência: e isto é desviar, em Vertigo
por exemplo, do fim do filme. Ora, um meio que desvie ou distraia do fim é um mau meio, e
por isso mesmo, se se dá numa obra de arte, a arruína.[7]
Para
um termo de comparação, e para terminar este artigo: note-se a delicadeza e a
elevação verdadeiramente artísticas com que Andrei Tarkovski filma – “metaforicamente”
– um ato conjugal nesta cena, e ter-se-á a dimensão de quão
nefasto é o erotismo nas artes em geral e no cinema em especial.
[2] Também a cor, nos
filmes de Hitchcock, é tratada de modo estritamente artístico e expressivo.
[3] Na época, os rolos não podiam
filmar mais que dez minutos.
[5] Se porém determinada
obra tem por fim o mesmo erotismo, então nem será obra de arte por nenhum aspecto.
[6] Embora tampouco seja
conveniente um assassinato no cinema se não se faz com decoro. (Para decoro, vide “Vá e Veja”, de Elem Klimov.) Além disso, naturalmente,
filmes como Rope ou como Vá e Veja
não devem ser vistos por pessoas de qualquer idade. Aliás, numa sociedade devidamente
ordenada, dir-se-ia que não devem ser vistos senão por pessoas virtuosas. Ou se
negarão os abismos de perversidade em que é capaz de engolfar-se uma alma não virtuosa ante o menor estímulo?
[7] Lembre-se que o fim das
artes do belo em geral é fazer tender ao bem e
ao verdadeiro mediante o belo e fazer afastar-se do mal e do falso mediante o
horroroso.