quarta-feira, 30 de novembro de 2016
O arrependimento de um grande artista
Carlos
Nougué
Michelangelo, indubitavelmente um
grandíssimo artista (que o diga sua Pietà), foi durante quase toda a
vida, porém, um homem típico de seu tempo, o do mal chamado Renascimento,
quando esse câncer da Cristandade que é o humanismo penetrou quase tudo (a
política, o pensamento, a arte, etc.), chegando por vezes até à própria Cátedra
de Pedro. Já então, se se excetuarem em boa parte as Espanhas, autêntica
continuidade da Idade Média e propriamente chamadas Christianitas minor,
a maior parte dos homens e suas atividades tendia a não ordenar-se a seu fim
último e bem comum do universo, Deus, e portanto a esquivar-se da devida
submissão ao poder espiritual da Igreja. No século XIII, tudo louvava a Deus; a
partir do século XVI, quase tudo tendeu a louvar o homem, e, em meio a vaivéns
e por vias não raro sinuosas, o câncer vai espalhar-se até a metástase atingir
o ponto derradeiro com a “vitória” do humanismo dito católico na segunda metade
do século XX.
Pois bem, como dizia, Michelangelo
não escapou deste mal e suas conseqüências, quer na vida privada, quer na
atividade artística: idolatria do homem e da própria arte, e libertinagem.
Diferentemente, contudo, de um Leonardo da Vinci ou de um Botticelli, cujas
obras são de um gnosticismo muito mais acentuado e de uma sensualidade ainda
mais enfermiça que os de Michelangelo, este ao fim da vida se arrependeu de
tudo quanto fizera. Sabemo-lo porque o diz o próprio artista, quer pelas obras
dos últimos anos (nada sensuais), quer sobretudo por um tocante soneto. Com
efeito, Michelangelo costumava compor poemas para descrever cada fase de sua
carreira, e não o deixou de fazer para refletir a última. E entre os poemas
desta está o referido soneto, que se lê abaixo (primeiro na língua original, e
em seguida em antiga tradução literária de minha lavra):
Giunto
è già ’l corso della vita mia
Con
tempestoso mar per fragil barca,
Al
comun porto, ov’ a render si varca
Conto
e ragion d’ogni opra triste e pia.
Onde
l’affetuosa fantasia
Che
l’arte mi fece idol’e monarca
Conosco
or ben, com’ era d’error carca
E
quel ch’a mal suo grado ogn’ uom desia.
Gli
amorosi pensier, già vani e lieti,
Che
fien or s’a duo morte s’avvicino?
Da
uno so ’l certo, e l’altra mi minaccia.
Nè
pinger nè scolpir fie più che quieti
L’anima,
volta a quell’ amor divino,
Ch’aperse,
a prender noi, ’n croce le braccia.
Tradução
Já
atinge o curso desta vida minha
Com
tempestuoso mar por frágil barca
O
comum porto, aquele a que se atraca
Por
prestar contas de obra triste ou pia.
Ora
a tão afetuosa fantasia
Que
me fez da arte ídolo e monarca
Eu
já sei contra que faz sua carga:
O
que, malgrado seu, o homem ansia*.
E
os tão ligeiros e mui vãos transportes
De
outrora, já perante as duas mortes?**
De uma
estou certo, da outra me amofino.
Já
nem estátua ou fresco*** me
conduz
À
paz da alma, só o amor divino,
Que
a nós mui largo abraço abriu na cruz.
Postado por
Carlos Nougué
às
15:22
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